Uma multiplicidade de interpretações

Texto de Carlos Almeida (na foto, segundo a contar da direita), com notas de suporte à intervenção na nona sessão do Clube de Leitura de Monchique, dedicada ao livro O Sorriso Enigmático do Javali, de António Manuel Venda (ed. On y va), a 25 de Outubro de 2019

 

Para além de O Sorriso Enigmático do Javali (2010), li mais dois livros de António Manuel Venda: Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade (1996) e Contos Municipais (2014). A primeira vez que li este livro remonta a 2010, pouco tempo após a sua apresentação em Monchique, salvo erro no antigo Longevity Wellness Resort.

Eu aprecio bastante a expressão escrita do António, e neste livro em particular, apesar de se tratar de livro de contos sobre as aventuras do pequeno Tukie – uma alusão tácita ao seu filho mais velho –, destaco a multiplicidade de interpretações que podemos fazer de determinados capítulos/ contos. O texto permite-nos divagar sobre assuntos que fogem ao enredo que se encontra propriamente narrado.

 

Capítulo 1 – Depois das perdizes paradas

A ação decorre na Herdade no Convento, num montado do Alentejo. Embora o pequeno Tukie não fosse um caçador, ele gostava de fotografia. A diversidade de fauna descrita é pormenorizada na garça, nas perdizes, no pardal, no gato-bravo, na gineta e no gato Palonsiño.

Para mim, e esta é uma interpretação que pode ser estapafúrdia, o António utilizou duas personagens de tempos passados, a Perdizinha e a Pata Larga, para estabelecer referenciais de tempo e espaço. A Perdizinha, pequena, desembaraçada e de andar rápido, contrastando com a Pata Larga, forte, alta e que ficava fatigada só por se equilibrar nos pés de tamanho 43. A relatividade do tempo, que nos falava Einstein, é-nos oferecida pelo olhar do pequeno Tukie a captar o voo da garça para a morte na sua câmara fotográfica. O que é passado, presente e futuro? O que é a realidade?

Até o gato Palonsiño soltou um ligeiro miado, «como se opinasse sobre alguma coisa misteriosa» (p. 15). Deverá ter, certamente, a sua interpretação.

 

Capítulo 2 – O sorriso enigmático do javali

Talvez as histórias do montado possam ser ficção ou verídicas, não sei, mas é evidente a existência de um registo de cariz, direi, autobiográfico do António, na qualidade de pai do pequeno Tukie. O capítulo refere um regresso do pai do pequeno Tukie da capital, Lisboa, a cidade perdida, quando não era pior…

O pai conta o episódio do javali doido que ficara a dormir (ou morto) depois de ter ido contra uma azinheira. Foram ver o javali, que de facto se encontrava a dormir numa posição estranha, e o pai do pequeno Tukie recordou um cão que tinha visto num consultório veterinário, como consequência de lutas com javalis. «Os dentes daquele javali, bem perigosos, parecendo afiados, (…) junto com o focinho do javali, formavam uma espécie de sorriso.» Um alvoroço por dentro, de patas para o ar, e enigmático por fora, expresso num sorriso. Estava contente, devia correr-lhe bem a vida, supôs o pai de Tukie. O javali acordou e o seu sorriso enigmático, sem razão aparente, só despareceu porque ele deu meia volta e desatou a correr pelo montado. Ainda se ouviram gargalhadas, quiçá a cabeçada na azinheira tivesse determinado a loucura do javali, pensou o pequeno Tukie.

É o capítulo que coloca o Homem e a sua curiosidade ao nível da natureza. As gargalhadas que o pequeno Tukie e o pai ouviram a concluir o episódio demonstram que a ignorância humana se equipara, até certo ponto, à sua necessidade de imaginação e de suposição. Quando o conhecimento é alcançado, o que, hipoteticamente, é enigmático ou novidade depressa adquire contornos de obsoleto.

 

Capítulo 3 – Gina gineta

O barulho da motosserra não provinha do montado, era como que viesse de dentro do monte.

«Mas o pai estava em casa; devia estar a escrever, ou a ver se escrevia, que era o mais normal.» (p. 26)

A motosserra era um gato-bravo, uma gineta, que estava tão nervosa que parecia ter um motor a trabalhar dentro do estômago. O pai do pequeno Tukie julgou que a gineta tivesse aparecido por causa dos gatinhos, contudo, a gata, habitualmente dócil, estava a ganhar no que ao confronto entre espécies diz respeito.

Por fim, o pai do pequeno Tukie utilizou uma pá de cozer pão para afugentar a gineta Gina, como referira o pequeno Tukie, para fora do monte.

 

Capítulo 4 – A águia que subia

A dimensão temporal sempre presente, uma evocação a carecer de precisão, como se o autor estivesse a fazer um esforço para se recordar dos factos concretos: «Um dia, quer dizer, uma tarde, ou melhor, um dia ao princípio da tarde.» (p. 35)

A mancha de pássaros que parecia não terminar. A «águia que subia», um único ser, atacar um exército tão grande, mesmo que formado por seres que isolados tinham muito menos argumentos. «A menos que atacar um bando assim fosse algo só para águias loucas, que não medissem os riscos, e aquela pertencia ao grupo das loucas. Seria perigoso?» (p. 38)

 

Capítulo 5 – Uma cobra para três corvos

Em dia de limpezas primaveris, o pai do pequeno Tukie deu com uma cobra a espreitar de dentro de uma saliência de um tronco de uma oliveira. O pai do pequeno Tukie conseguia pensar normalmente, só não se conseguia mexer, quiçá hipnotizado pelo bicho. No período de paralisação, que pareceu uma eternidade, o pequeno Tukie perguntava se podia utilizar o machado, mas o seu pai estava à mercê da cobra.

«Um palmo ao lado do pescoço dele e menos de um metro acima do filho. Foi onde a cobra passou, depois de um impulso tão grande que a fez aterrar dentro da fogueira.» (p. 49) Momentos após lutar contra outras vidas, a cobra estava nas chamas, sobre as brasas, a lutar pela sua própria vida. A cobra que morreu pela língua no arame do estendal e que viria a ser banquete de três corvos.

 

Capítulo 6 – O deputado das lebres extraterrestres

Uma histórica com claro cariz autobiográfico: «Viagens à noite. O pai do pequeno Tukie fazia muitas assim, algumas a regressar do trabalho, outras em que o regresso era da casa dos pais, lá bem nas serras do sul.» (p. 53)

A descrição que é feita das viagens de Monchique até ao montado são extremamente precisas em termos espaciotemporais. Nessas viagens, havia corridas com as lebres que, seguindo nos limites da luz projetada pelos faróis do carro, ziguezagueavam, aguentando velocidades acima dos 50 km/h à frente da viatura. Perante a insistência do pequeno Tukie, o pai levou-o a assistir à habilidade das lebres. O miúdo observou o espetáculo das quatro lebres com um brilho nos olhos, ao invés do deputado sem parte da cabeça, que aproveitou o fenómeno para apanhar uma lebre e, deturpando a natureza terrestre das «criaturas», montou um circo mediático em torno de uma curiosa e singela forma de interação entre seres animais e humanos.

 

Capítulo 7 – Talvez a segunda vida

O pai do pequeno Tukie encontrou aquela que pensava ser a gata Malhas, de corpo rígido, na berma da estrada para o monte. Cruzou-se com um jipe da GNR, no qual o guarda pendura constituiu uma «inspiração de trás para a frente». Ao telefone, o pequeno Tukie insistia que a Malhas iria voltar, apesar das certezas do pai sobre o assunto.

Neste capítulo, o autor relembra o treinador do Sporting na altura do enredo – José Peseiro –, que não lhe inspirava grande confiança, e o encontro europeu contra a (fraquíssima) equipa sueca do Halmstads (29-set-2005). O Sporting foi eliminado, em casa, da Taça UEFA, sendo o presidente, outro pior que o treinador, Dias da Cunha.

Afinal, a Malhas estava viva e o pai do pequeno Tukie foi de férias para o Algarve, vendo-a subir para a sua azinheira.

 

Capítulo 8 – A borboleta do imperador Ming

A borboleta, «nunca a tinha visto chegar», era como se se desmaterializasse e aparecesse noutro sítio. A explicação ficaria a cabo de um cientista ou de um político «capaz de entrar sem problemas num concurso de mentiras». (p. 71)

A borboleta, essa, «era a nave espacial do imperador Ming», respondeu o pai do pequeno Tukie à questão do filho: de onde vinha e a quem pertencia? A propósito, o imperador Ming era o vilão dos desenhos animados do super-herói Flash Gordon.

No que se refere à classe política: «Ser malandro não era condição essencial, mas em Portugal parecia que ajudava.» (p. 72) A questão do capítulo: «Pai, por que é que os políticos são mentirosos?»

 

Capítulo 9 – O lagarto da clave de sol

O lagarto aproveitava o Sol quando as nuvens deixavam, nada o parecia incomodar e tinha a cauda em forma de clave de sol. O pequeno Tukie conseguiu tirar um bom conjunto de fotografias até aparecer uma nova nuvem.

A criança supôs que o lagarto tocava canções, porém, eram apenas emitidas pelo rádio da empregada, que havia caído no alegrete. O pequeno Tukie sugeriu, ainda, que talvez fosse o lagarto a fazer cair o aparelho para o alegrete, bem como a ligá-lo na altura em que passava uma música do Tony Carreira.

Quando procurava o rádio entre as flores do alegrete, o pai do pequeno Tukie levantou o braço e o lagarto veio agarrado à manga da camisa, por sinal cara e nova. O bicho tinha um sorriso atrapalhado, embaraçado. Não era, contudo, um lagarto especial, tinha uma característica muito peculiar – a cauda em clave de sol –, o que não implicava que fosse um talento para o desenho ou para a música; no máximo, sabia ligar um rádio.

 

Capítulo 10 – Animal doméstico

Lembrou-se do calor da noite do fogo que tinha vivido uns anos antes, o incêndio na serra da sua infância (…).

O ouriço-cacheiro sofria o susto em silêncio. Depois do episódio com o pai do pequeno Tukie, o bicho voltou ao monte e, atrapalhado, acabou mesmo por brincar com o pequeno Tukie, até este se fartar. Mas o ouriço-cacheiro não partiu de vez e voltou para comer, desavergonhado, nas gamelas dos gatos e com os gatos.

 

Capítulo 11 – O texugo mais gordo do montado

Os quatro cães (três cães e uma cadela) estavam sempre à espera quando o pequeno Tukie chegava das procuras mais a sua mãe e a bebé.

Numa dessas procuras, aquilo que pareciam ser cinco cães, não era. O quinto elemento era, sim, um texugo gordo que corria de forma atabalhoada, como se fosse desnorteado, ou um bêbado. O texugo era tão gordo que fazia jus ao ditado «gordo que nem um texugo» e, muito provavelmente, seria o texugo mais gordo do montado. Não corria com os cães, mas fugia deles e não sabia para onde se virar.

Foi salvo pelos donos dos cães, que os conseguiram chamar até ao carro e fechá-los no monte. Por incrível que pareça, não desapareceu; avançou para o portão do monte, face à estupefação do pequeno Tukie e da sua mãe. Ao fim e ao cabo, queria apenas agradecer.

 

Capítulo 12 – Uma rela

Rã não, uma rela. Segundo o livro dos animais do pai do pequeno Tukie, as relas tinham sido utilizadas como barómetros e, de acordo com as características apresentadas, suspeitou que tinham uma fêmea em casa. Talvez a Internet chegasse bem ao monte, porque a rela funcionava como router, e não propriamente pelo serviço contratado (Sapo).

O pequeno Tukie pediu ao pai para ver a «rã» e foram dar com a rela ao pé do lagarto da clave de sol. O pequeno Tukie adormeceu a pensar na música que ambos poderiam produzir: a rela a coaxar e o lagarto da clave de sol a emitir uma qualquer faixa de Tony Carreira.

[Texto: Carlos Almeida]