Partir de uma máquina de interrogações

Texto de Eduardo Jorge Duarte, lido na apresentação do seu livro de poesia O Intervalo entre o Raio e o Trovão (ed. On y va), a nove de Novembro de 2019, em Monchique, no salão da Junta de Freguesia

 

Há muitas coisas que se tiram de dentro do peito com um livro de poesia. A mais imediata até pode ser a música, como dizia Jorge Luis Borges, ao considerar que a poesia lhe chegava como uma música à qual agregava palavras. Ou como Sócrates, naquele sonho recorrente em que um deus aparecia e lhe dizia:

– Compõe música! Pratica música!

Mas ele considerava que música era exactamente aquilo que fazia ao falar e argumentar com os jovens. No entanto, um dia, na prisão, quando à beira da morte, já muito perto do cálice de cicuta, pensou:

– Será que aquilo que eu considero música é apenas uma maneira de pensar e não música?

Pode-se, pois, pensar que há na poesia, desde a sua mais antiga tradição clássica, uma razão catártica, vital, diria, como as saudades de Monchique, que permite tornar suportável e comunicável uma certa inaptidão, espanto ou rejeição face ao que nos rodeia. Outra razão, entre tantas, é a de poder ser encarada como um exercício de auto-reflexão, uma forma de melhorar a pessoa que sou, o cidadão a tempo inteiro em que fui investido, obrigando-me a confrontar-me diariamente com uma essência emocional só comparável à de um homem que não quer nunca deixar de ver reflectida no espelho a imagem da criança de cabelo muito preto, escorrido como água sobre a testa, com covas a sorrir na cara, que me diz para não fazer coisas feias.

Escrever poesia é também um impulso para a mudança, às vezes, tantas vezes, explosivo e violento, cansativo e demorado na escolha das palavras certas, das metáforas apropriadas, mas também uma tarefa muito divertida, na medida em que há em cada construção nova uma igualmente inédita apreensão da beleza por mim próprio, mesmo quando é uma beleza de nuvens espessas e cinzentas, que me leva a acreditar que na poesia, enquanto linguagem artística, existe qualquer coisa de indulgente que pode ajudar-nos a melhorar as nossas vidas e, consequentemente, as dos outros. É que ninguém aceita a diferença no outro se não aceitar os eus diferentes que durante o dia e durante as horas lhe vociferam ininterruptamente ao ouvido.

Deixem-me fazer uma breve ressalva para vos dizer que a poesia é também um passo para outros exercícios literários que espero poder apresentar-vos em breve. Sim, só o futuro poderá confirmar se serei capaz do que me propus. Há uma opinião que partilho com o António Manuel Venda que é a de que quem consegue escrever poesia consegue ser mais hábil a manusear a palavra quando passa para a prosa. Este não é por isso um livro que tenha sido escrito com o objectivo de conseguir a aclamação da crítica ou o aplauso unânime dos leitores, mas não posso deixar de referir que é o resultado material de uma vontade ávida de trabalho, de descascar com os dentes as sensações e as emoções até encontrar o filão da palavra que melhor as transmite como se viessem de dentro de quem as lê.

Nesse sentido, tenho esperança de que este livro, como todas as outras manifestações da imaginação, possa, de uma certa forma, ter o seu impacto, pois trata-se de pensamento criativo em tempos voláteis, feito de polarizações exacerbadas, de desigualdades cada vez maiores, de cisões entre o nós contra o eles, de muros erguidos em caboucos de humilhação e electrificados a medo da diferença, de valas fundas cavadas no horror causado pela repulsa pelo outro. O ar que se respira, para dentro e para fora da poesia, não deixa de ser também ele volátil, tempestuoso, incitando versos subversivos, famintos de justiça, no intervalo entre o raio e o trovão. Versos que sejam, como diria Amadeo de Souza Cardoso, «produtos emocionais da natureza, fontes de vida, de sensibilidade, de cor, de acção mental e poder emotivo» e que permitam trazer alguma proactividade cidadã em vez da resignação, do desespero e da crispação.
Ciente do tamanho da ilusão, gostava, pois, de pensar que os poemas deste livro contrariam a leitura mais imediata de uma das epígrafes que dele constam e pudessem fazer qualquer coisa acontecer, reparar falhas, acender em quem tenha a paciência de os ler um vislumbre fugaz de humanidade renovada.

Quando aludi à proactividade, foi porque acredito que o dever de qualquer artista, mesmo os que são só um arremedo de poeta, como eu, é o de impregnar um sentido contagiante de empatia. Aqueles que, para nosso espanto, em pleno início de um novo século, e nos quais me incluo, são ainda privilegiados por serem homens, por viverem com um ordenado fixo ao fim do mês, por terem onde dormir, por terem acesso a um serviço nacional de saúde, por beneficiarem da universalidade da escola pública, devem utilizar esse privilégio da forma mais altruísta, livre e justa possível para que aqueles homens e mulheres, novos e velhos, que fogem da guerra, da fome, das alterações climáticas, das imposições de classe, das desigualdades sociais, da violência doméstica, da falta de cuidados médicos e de educação, possam também viver esse privilégio, viver num mundo melhor. Um mundo redondo que começa no lugar onde vivemos, que principia em quem somos mas que, por graça da arte e do seu dote infinito em demonstrar provável tudo o que à ciência é impossível, pode ser transformado todos os dias se nós mesmos estivermos abertos à mudança.

Por isso, é para mim tão importante que a poesia, hoje, que estes versos que aqui lemos e que resultam de uma interacção geológica de forças e fraquezas que me moldam e que nunca deixam de celebrar a vida e a liberdade, possam sempre partir de uma máquina de interrogações cuja engrenagem se move nas seguintes perguntas:

– Como te sentirias se isto te acontecesse a ti?

– O que te dirias se fosses tu a falar sobre quem és contigo próprio?

– O que é que podes fazer de maneira a tornar cada experiência em que te vês uma mundividência justa e livre para ti e, sobretudo, para os outros?

Muito obrigado pela vossa simpática presença!

 [Texto: Eduardo Jorge Duarte]