Experimentar o gelo da nossa existência e o calor da nossa essência

Texto de Eduardo Jorge Duarte (na foto, ao centro), lido na apresentação do livro de poesia O Milagre do Entardecer (ed. On y va), de António Souto, a 22 de Dezembro de 2019, no Solar do Alambique, em Angeja (Albergaria-a-Velha, Aveiro), terra natal do autor

 

Queridos amigos

Há cerca de um mês, estava eu ainda a cambalear de euforia pelo milagre da paternidade, quando o professor António Souto honrosamente me convidou para fazer a apresentação de O Milagre do Entardecer, hoje, em Angeja, sua terra natal. Nessa altura, perplexo, lembrei-me das palavras de Pêro da Silva, homem de fibra, capitão de Malaca, fundador do Convento de Nossa Senhora do Desterro, à data de 1631, em Monchique, aquando da sua nomeação, anos mais tarde, para o cargo de Vice-Rei da Índia: «Que Deus perdoe a quem me propôs para esta ocupação, porque eu não sou para ela.» São estas palavras que soam na voz da minha consciência de cada vez que encaro desafios ou propósitos maiores do que eu, mais fortes do que as minhas forças, mais inteligentes do que o meu entendimento ou necessitados de mais fôlego do que aquele que a respiração da minha alma pode conter.

O convento de que vos falo, mandado erigir por esse homem honrado e digno, resultou da paga de uma promessa: à beira de um naufrágio, jurou Pêro da Silva edificar um mosteiro franciscano na primeira nesga de terra que avistasse das mandíbulas do alto mar encapelado. É por isso que, agora, como em tantas outras vezes em que me sinto a perder o pé diante de tão exigente tarefa, recordo a lucidez daquela frase e a replico como numa oração. É desse chão firme que inicio esta minha apresentação, evocando o poema intitulado tudo brasido (III). Foi o professor António Souto quem o escreveu, há tempos, por ocasião de uma visita ao Portugal profundo na companhia das suas adoradas filhas, dedicando-o a António Manuel Venda, monchiquense como eu e editor do livro que hoje se atira ao mundo. Diz o poema:

 

Do cume da foia se avista o mar, diz-se. haja

céu e olhos desimpedidos. O magma verde destila-se

em azul

 

do cume da foia se avistam dois dinossauros em

abandono. haja luar e cisma copiosos. o fresco das

copas amacia-lhes o recorte

 

no colo da encosta a velha magnólia pitonisa do

convento é muito velha e muito sábia

 

(………………………………………..)

 

e entre ruínas mirrou pacificada

adivinhando como muito mais amarga sucumbir à

asfixia das chamas

 

Do cume da foia se avista uma

demorada noite de cinzas

 

Com os dois pés assentes na terra firme deste poema sobre a minha terra, posso então começar a desinibir o ânimo e partilhar convosco o que tenho guardado sobre este O Milagre do Entardecer. E para o fazer, não posso ainda deixar Monchique de vez e juntar-me a todos em corpo inteiro. É que para falar deste livro tenho de salientar a beleza natural da capa, concebida pela Zé Ventura, artista plástica monchiquense, referindo também o papel fundamental do editor, António Manuel Venda, o príncipe da literatura monchiquense, título romântico mais do que justificado, na medida em que foi ele quem colocou Monchique no mapa literário português.

Mas passemos a O Milagre do Entardecer. Ao dar entrada nesta antologia, composta por cinco partes distintas que formam uma unidade insofismável, entra-se automaticamente numa fusão com a Natureza. Com a Natureza do que somos e com a Natureza que nos rodeia. Na pele de autor ou na pele de sujeito poético que nos convida a vestir, experimentando o gelo da nossa existência, numas vezes, e o calor da nossa essência, por outras, António Souto incita-nos a visar a verdade de cada coisa sem receios da indeclinável explosão nos sentidos e no coração que lhe é consequente. Nalguns dos poemas, senti-me a ler Montaigne em verso, pela maneira corajosa com que os versos pegam a dúvida pelos cornos. No entanto, estes versos que hoje nos reúnem não devem ser encarados como receitas para tornar os nossos dias mais suportáveis, vacinas contra o mal ou pingos para estimular a moral, embora o leitor possa sentir-se livre de se ver nesse efeito. Senhor daquilo a que José Gomes Ferreira chamou inteligência do coração, com uma humildade lírica a latejar em cada verso, António Souto oferece-nos um conjunto de composições poéticas que escavam fundo a verdade de quem somos, adicionam beleza à nossa humanidade e humanidade à beleza da paisagem natural ou construída.

Este O Milagre do Entardecer estimula e apura os mais nobres sentimentos, recorrendo o autor a um estilo que, por vezes, dispensa a tão burilada ânsia de absoluto presente em tantos e tantos livros de poesia. A comprová-lo, atente-se, por exemplo, no verso do poema no passeio, quando diz: e o mais que tudo é ser-se nada.

Nesse estilo, tantas vezes de mãos dadas com a profundidade reflexiva das suas crónicas, António Souto apresenta-se ao serviço da poesia comprometido com os valores da realidade, mas também com a arte e, acima de tudo, com a vida. Poemas como em vinte e cinco ou mendigo ou instantâneo ou a guerra é a guerra ou menina ou contratempo (este último com uma crítica implícita à indiferença ao outro, ao excesso de eu e de ego à nossa volta) trazem à tona a consciência cívica e social do autor e um compromisso vincado com a necessidade de renovação da sua investidura de cidadão.

Os poemas aruspício e perseverança, por exemplo, fazem-nos crer na poesia como signo indelével da esperança, como ferramenta de sonhar outras realidades prometidas pela liberdade e pela fantasia. Ao contrário do que sugere W. H. Auden na elegia ao seu amigo W. B. Yeats, na qual diz que a poesia nada faz acontecer, poemas deste raro quilate fazem o leitor acreditar que a poesia é a arte de transformar o banal em imaginação, o ruído em música, memórias em imagens, a existência em essência, como se cada verso fosse a realidade a acontecer, como se a poesia (e veja-se isso bem patente no poema o porto sempre por achar) fosse uma forma de esbater diferenças, abolir fronteiras, derrubar todos os muros que nos afastam do sonho, mas também e, essencialmente, da empatia que nos deve colar uns aos outros.

Pese embora a riqueza do vocabulário, António Souto dá-nos versos como se fossem cerejas: são como cerejas, diz-nos a determinado momento, falando sempre com simplicidade, nunca escamoteando a essência das coisas. Em composições como identidade, ou desapego, ou a nascente, ou cerimonial, António Souto contribui com originalidade para uma epistemologia da poesia ou meta-poesia, nos quais explora a relação entre a identidade una da poesia e a diversidade do espanto.

Espanto esse que se manifesta sorrindo no rasgo criativo de inventar novas palavras como descreversejando, ou excrever, ou lisboamente, vocábulos flexíveis ajustados ao sentir, ao bater do coração, termos que se constituem gráficos, instrumentos de metamorfose orgânica do sensível para o domínio do tangível e do inteligível. Por outro lado, explorando ainda uma encosta lúdica da poesia que corrobora Manoel de Barros quando diz que a poesia para ser séria tem de atingir o grau de brinquedo, António Souto lapida alguns dos seus poemas com jogos fonéticos de sílabas, conforme se pode ler naqueles referentes às estações do ano, logo no início do livro. Cito como exemplo desta forma de brincar com as palavras o poema primavera:

 

A mais terna e verna das

palavras lavras

 

mera quimera

se prima

se vera

se era

 

Seja no diálogo estabelecido com outros poetas habitantes dos parnasos da Língua Portuguesa como Eugénio de Andrade, Antero de Quental ou Herberto Helder, ou tecendo quadros impressionistas, ou narrando histórias que colocam os sentidos em sentido, apresentando um sujeito poético que tenta decifrar-se pedindo versos com que se possa adivinhar, somos chamados a uma poesia que deslumbra por explicar a universalidade a partir de uma aldeia ou de uma paisagem, que abranda os tempos vertiginosos que vivemos à velocidade da lava, que é ponto de partida e o ponto de chegada e se explica a si mesma, por si só, no ato de dizer sem limites.

O talento trabalhado do autor puxa lustre a qualquer coisa implícita, inexplicável, que está lá, oculta nos versos e não se deixa ver escancaradamente, conforme ensina o poema cisma quando diz que o poema nunca diz/ existe.

Por isso, e dando por terminada a minha preleção, partilho convosco uma questão que me vocifera sem cessar de cada vez que leio um livro de poesia. É aquela que Rainer Maria Rilke faz nas missivas que remete ao jovem poeta que incessantemente o procura pedindo-lhe conselhos. Diz o poeta: «Na mais silenciosa hora da noite, pergunte a si mesmo, tenho de escrever?»

António Souto responde contundentemente em apenas três versos de dois poemas distintos deste livro:

 

quando for o tempo

que seja

 

tudo tarda quando se faz tarde

 

Muito obrigado pela vossa atenção!

[Texto: Eduardo Jorge Duarte]