Um livro polifónico

Texto do escritor Paulo Correia (na foto, ao centro), lido na apresentação do livro de poesia O Intervalo entre o Raio e o Trovão (ed. On y va), de Eduardo Jorge Duarte, a nove de Novembro de 2019, em Monchique, no salão da Junta de Freguesia

 

(um texto feito de fragmentos, iniciado logo após o convite, foi progredindo em círculos concêntricos até atingir a sua forma final momentos antes do acto expositivo)

O autor, Eduardo Jorge Duarte, conta já com dois livros editados, «Montanário» e o volume de contos «Uma Coruja nas Ruínas», respectivamente em 2017 e 2018, pela editora On y va, sendo este o seu terceiro livro e primeiro de poemas, editado pela mesma chancela.

Recordo igualmente a sua participação na colectânea «Desassossego da Liberdade» (2015) e outras participações na imprensa, no «Jornal de Monchique» e na edição portuguesa do jornal «Le Monde Diplomatique». No domínio da edição foi co-fundador da revista literária «Garanta», em 2017, tendo igualmente participado como colaborador nos números 0 e 1 da revista.

Começo com as palavras de Gonçalo M. Tavares, na entrada «Geografia», do seu livro «Breves Notas Sobre Literatura-Bloom»:

«(…)
Onde aconteceu isso?

Isso aconteceu na literatura

A única geografia da literatura é a frase.»

No caso presente, a geografia do poema pode ser o verso, partícula mínima de uma construção vertical, quase uma vertigem, como o autor refere no poema «Há palavras tão fundas/ Que deveriam ser escritas na vertical,/ De cima para baixo, /(…)» (pág. 69), parecendo aludir ao edifício do poema, como se de um mergulho se tratasse em toda a extensão ou espessura da linguagem, das profundezas marinhas às mais altas camadas aéreas. É igualmente uma explicação do exercício do poema, que alude aos processos da construção poética, uma meta-poética.

O leitor deve colocar-se do lado do silêncio para escutar as palavras aqui ditas, inscritas no intervalo de tempo entre o raio e o trovão, reminiscência possível ou intertextualidade com a obra de Luís Miguel Nava, autor de «Rebentação» e «Vulcão», entre outros livros de poesia.

Cito: «Estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida, através da qual a carne supurava. Das perdidas manhãs de sol da sua infância, de que lhe restavam agora escassos farrapos presos às raízes, libertava-se por vezes um clarão, desesperado apelo em direcção à realidade, rasgando-o dos olhos aos ouvidos. (…)» (excerto do poema «Borrasca», do livro «Vulcão», editado pela Quetzal em 1994)

O título remete-nos desde logo para o campo do instante, do lapso temporal (entre a deflagração da luz e o ribombar do trovão); parece uma alusão ao processo da génese do poema, de como ele surge, até ao aparecimento dos primeiros versos e a consequente impressão, ou seja, a revelação do poema. Pode ser um processo rápido ou mais lento, mais ou menos intenso, em deflagração ou rebentação.

Estes são poemas com o tempo em pano de fundo, ou a passagem do tempo, mínimo como o tempo que medeia entre a luz de um relâmpago e o som do trovão, instante ou eternidade, como no poema «Metáfora de uma coisa que passou». Nestes poemas não existem fórmulas pré-estabelecidas, apenas um aturado labor de linguagem.

Estamos perante um livro polifónico, com se o autor se multiplicasse ao comando dos diversos instrumentos de escrita ao seu dispor, num discurso de alteridade em que a multiplicidade se funde na escrita. Este manejar das palavrar ou «tanger da lira» é uma constante no livro, como se o ofício ou Arte Poética necessitasse de uma prática quotidiana, no sentido de um artesanato da palavra, quase uma liturgia.

 

Características dominantes

Deixo a seguir as características dominantes do discurso poético ou contributos para uma leitura dos poemas deste livro:

Ritmo e ludicidade – O autor recorre a dispositivos que privilegiam uma aproximação ao discurso musical, numa aturada filigrana de linguagem, onde dá uma especial atenção ao ritmo, numa forma quase «Cantabile», como em «linha torta, estrada, S, til/ (…)» (pág. 18), no poema «Cobra». Essa característica musical é conseguida com o recurso frequente à rima. No poema «Quem és tu, pequeno eu?», existe uma aproximação ao poema visual, com a diminuição progressiva do tamanho da letra nos últimos versos, enfatizando a redução dos horizontes da vida e das relações pessoais, entre as quais a redução do número de amigos, com um resultado verdadeiramente surpreendente.
Litúrgica – Existe um sentido de uma profunda religiosidade, seja na expressão autêntica de uma comunidade humana, paisagem ou lugar, ou até no mistério da perda ou da transformação dessa comunidade: «Ruínas são os ossos/ De uma casa quando morre./ (…)» (pág. 60); nesta leitura da decrepitude de uma casa, é como se a mesma representasse todo o declínio humano. Em «Estrada de Damasco», «Judas» e outros, as referências bíblicas são o ponto de partida para a construção dos poemas, sobretudo para enunciar sinais de esperança ou ensinamento. Cito um excerto do poema «Estrada de Damasco»: «(…)/ De repente,/ O negro prometido no poente/ Era a luz do dia transparente/ A nascer dentro de ti.» (pág. 59)

Telúrica – Existe uma atenção ao território umbilical, como matéria do poema, um forte sentido de pertença à «(…) Montanha, pedra, chão, viagem/ A terra nos ossos da linguagem,/ (…)» (pág. 29), tal não impondo contudo limitações ao discurso literário, antes podendo potenciar uma realidade imaginada e um diálogo constante com a memória.

Alguns dos sessenta e cinco poemas constantes de «O Intervalo entre o Raio e o Trovão» tinham sido anteriormente publicados nalgumas das obras do autor, que referi no início, mas a reunião feita no presente livro oferece ao leitor um retrato de conjunto que a dispersão não permitia.

As leituras que podem ser feitas aos poemas não se esgotam nas características que assinalei, antes é necessária a menção à diversidade como marca distintiva do discurso poético do autor, sem nunca ceder a um qualquer discurso dominante da poesia contemporânea portuguesa.

Poderemos contudo encontrar neste livro ecos da obra de autores como Ruy Belo ou Luís Miguel Nava, no caso do primeiro no que respeita ao tom de intimidade e religiosidade de alguns dos poemas e no caso do segundo releva a temática do clarão ou rebentação que está na génese do poema, confirmando o Eduardo Jorge Duarte como atento leitor de poesia.

Fica pois o apelo à leitura do primeiro livro de poemas do Eduardo Jorge Duarte, agradecendo-lhe a confiança que em mim depositou para uma primeira leitura pública. É ainda devida uma palavra de apreço ao editor António Manuel Venda (da On y va), pela recente aposta no campo da poesia.

[Texto: Paulo Correia]