A lucidez

Texto de José do Carmo Francisco sobre o livro O Intervalo entre o Raio e o Trovão (ed. On y va), de Eduardo Jorge Duarte; publicado na Gazeta das Caldas a 9 de Abril de 2020 (e disponibilizado também no seu blogue Mesa dos Extravagantes)

 

Depois de Montanário (2017), de ver contos publicados no Le Monde Diplomatique e no Jornal de Monchique e no volume Uma Coruja nas Ruínas (2018), Eduardo Jorge Duarte (n.1982) apresenta o livro de Poesia O Intervalo entre o Raio e o Trovão (ed. On y va), que é aliás o título do primeiro poema: «Parecemos perdidos no mundo./ No intervalo entre o raio e o trovão./ Perplexos na tempestade,/ Contamos cada segundo/ Que vai da luz da solidão/ Ao ruído da nossa humanidade./ E só após o estremeção/ Lembramos que a vida/ É uma corrente de ar comprimida/ Entre o estrondo e o clarão.» No poema da página 21 surge um outro olhar sobre a vida: «Trezentos e sessenta e cinco dias de velhice/ Inteiros, vividos em casas decimais./ O destino bateu-lhes à porta e disse/ Que a dor, o amor e tudo o mais/ Que neles se cumprisse/ Eram milagres fatais/ Da meninice/ A morrer de causas naturais.»

Um dos aspectos fascinantes neste livro é a lucidez, como quando o Poeta fala consigo mesmo («Também morrerás, poeta,/ Fica descansado») ou fala da pressa como inimiga da Poesia («Era qualquer coisa que nos acontecia/ E para a qual não tínhamos uma definição/ Nenhuma palavras lhe servia.») ou ainda sobre o acto de ler: «Não tenho pressa/ O caminho é em frente/ Uma casa não se começa/ Pela telha mais recente/ Como um verso delicado/ É um modo alvoroçado/ De dizer um sentimento urgente./ O meu trabalho é paciente/ Percorro livros, tapo cada buraco/ Deixado aberto pelo escritor./ A palavra é o meu fato-macaco:/ Sou leitor.»

Numa simples nota fica o poema da página 28, um programa completo: «Deixa tocar o poema/ Dá-lhe o tom e a voz que entenderes./ Se for coisa de saudades ou problema/ De amigos ou de mulheres/ Ouve-o, deixa-o falar sossegado/ Até que o sentimento mais limpo se revele/ E saibas então entrar na pele/ Daquele que não vês do outro lado.»

Pata terminar, o poema da página 57, que conclui: «Entre versos fúteis e opacos/ Até um cego pode ver a voz de Deus.»

[Texto: José do Carmo Francisco]