Para que serve a poesia?

Texto de Denise Estrócio, professora, de suporte à apresentação do livro Ornitologia, de Paulo Correia (ed. On y va), a 15 de Julho de 2021, no Auditório do Museu de Portimão.

 

Há um poema de Manuel António Pina que começa assim:

A poesia vai acabar,

os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis.

Por exemplo,

observadores de pássaros/

(enquanto os pássaros não/ acabarem).

 

De quando em quando surge alguém que pergunta: para que serve a poesia?

Este livro de Paulo Correia exemplifica-nos bem a ideia da poesia como um espelho, o reflexo de cada um de nós no outro e mais: o espaço que nos envolve e o eco de outros espaços e, por isso, outros tempos. E mais: as possibilidades de outros espaços e de outros tempos por vir. Olhando-nos num exercício de alteridade, isto é, olhando-nos como um outro, podemos retificar ou ratificar aquilo que vemos. A poesia, portanto, como uma espécie de observação, de estudo, de esboço de nós mesmos.

Esta ideia de estudo, ensaio, esboço é sugerida imediatamente pelo:

– tom monocromático e pelo tipo de traço da ilustração do autor, reproduzida na capa do livro;

–  título, Ornitologia, ramo da zoologia que se dedica ao estudo das aves.

No entanto, à medida que avançamos na leitura e entramos neste longo poema estruturado em oito secções, apercebemo-nos do equilíbrio em que devemos colocar este conceito de esboço, pois que, se por um lado remete para a concretização de uma ideia futura, por outro lado concretiza-se enquanto, por exemplo, a capa definitiva do livro publicado.

No breve texto introdutório que se lê na página 5 – «ORNITOLOGIA (breves noções)» – o autor propõe uma espécie de pacto de leitura, confirmando:

– por um lado, a exigência do olhar metafórico:  o pendor para o voo na natureza da ave. Na natureza da gralha-de-bico-vermelho, da garça, da cegonha, da águia, da coruja, da andorinha… Não. Na natureza humana. A elevação do ser humano a um estatuto divino, pela sua capacidade criadora, a visão da palavra como ato criativo, a colocação da poesia no degrau superior, a identificação da poesia com a própria vida;

– por outro lado, a suspensão entre o que foi e a certeza do que virá, o momento de observação, de estudo, o esboço que se pode aperfeiçoar perante a vitória da nossa própria natureza.

Esta ideia consolida-se na epígrafe que retoma parte do segundo verso de O Portugal futuro, de Ruy Belo («O Portugal futuro é um país/ aonde o puro pássaro é possível»). É uma epígrafe que:

– metaforicamente enfatiza a visão otimista da sobrevivência da poesia na sua plenitude;

– e, ao mesmo tempo, alerta para a recorrência da intertextualidade em todo o poema.

Depois temos a inscrição Ab initio, que é o mesmo que ab ovo, e que parece impor-se como título do poema propriamente dito. E no preâmbulo deste poema inscrevem-se duas dedicatórias que o sujeito poético assume como poemas, como texto, portanto, e não paratexto, isto é, não estão à margem do texto.

Estes dois poemas-dedicatórias abrem caminho lançam a sugestão da ideia de berço, ou se quisermos permanecer no seio da metáfora, de ninho. Mas que berço? Que ninho? O de registo autobiográfico, a relação do autor com o filho, João, e com a filha, Mariana? O da relação do sujeito poético com os seus dois poemas primordiais? Mais uma vez somos convocados para este exercício de equilíbrio entre possibilidades.

Esta segunda leitura, que propõe João e Mariana como dois poemas, constitui-se consolidação de uma proposta de leitura metatextual: a poesia que fala de poesia, a poesia que convoca a poesia, a poesia que se oferece em dedicatória à própria poesia.

Assim:

– João desbrava a relação entre a palavra e o silêncio, aponta para a multiplicidade de significados residentes no silêncio, a função do silêncio no movimento de aproximação;

– Mariana desbrava a relação da palavra com a luz, a relação da rememoração com os afetos, a capacidade de a palavra convocar em simultâneo espaços e tempos diferentes, a capacidade presentificar, a capacidade de revogar as leis de Cronos.

Abrimos, então, a Parte I:

e era como se a vida/ fosse só esses dois poemas

Estrategicamente estruturada como dístico e isolada numa página, esta estrofe sintetiza o impulso do regresso às origens como exercício ontológico, reforçando o movimento circular desta procura que subjaz no texto.

Esta procura concretiza-se no desenho de um trajeto com referências espácio-temporais muito precisas: o ano de 2015 como o ano de chegada ao sul do país, marcador temporal que une um ponto de partida e um ponto de chegada localizáveis no mapa do nosso país; 2015, fronteira entre o que foi e a promessa do que será; 2015, a data em que se equilibram tempos que são também lugares, ou lugares que também são tempos.

Nesta demanda do pássaro possível, o local de chegada num futuro que se adivinha  pelo anúncio da prole por nascer, a suspensão do voo primordial anuncia a já perdida […] inocência em Portugal e introduz-se pelo contraste lexical que evoca Ícaro: a promessa de voo (os corpos ainda por alar) e simultaneamente a constatação da queda  (a imagem da cegonha que tomba sobre o asfalto), ou seja, da morte inevitável, oxímoro que se sintetiza no versos morte por causas naturais/ do dia que acabara de nascer.

Mas uma morte que evoca Fénix, o pássaro que renasce, como cada dia, após a noite. Uma morte, com a promessa da sobrevivência, do regresso ao initio, ao início, ao ovo (o símbolo da casa/ com paredes curvas), a germinação dos filhos, que é como quem diz, dos poemas. E é no ninho, que é como quem diz, na voz, casa consagrada à palavra, abrigo sem paredes, que o poema cresce como um gigante indomável.

Mas o pendor para a elevação é contrariado por diversos fatores que o sujeito poético enumera com mordaz ironia. A força da gravidade prende o sujeito poético, de pés afundados numa fenda de conchas limpas, ao mar chão. Vemos, mais uma vez o anúncio de um rasgo de esperança na metáfora do náufrago, que ainda que apenas pela imaginação, não deixa de voar.

Na imagem que o poema-espelho nos devolve, está muito nítida a paisagem circundante, inóspita, iníqua, relaciona-se explicitamente com a morte. Tropeçamos em palavras como vala, morte, jaz, sepultura, num retrato amargo com referências muito claras ao que nos é contemporâneo, o que impossibilita qualquer tentativa de elevação: o mediterrâneo como cemitério; o desordenamento do território; o turismo desregrado, em suma: as costas viradas aos elementos primordiais, a terra, a água, o ar. A artificialidade, que nos faz recordar o poema 36 de O Guardador de Rebanhos:

E há poetas que são artistas

E trabalham nos seus versos

Como um carpinteiro nas tábuas!…

 

Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro

E ver se está bem, e tirar se não está!…

Quando a única casa artística é a Terra toda

Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

 

Assim, em Ornitologia, testemunham-se as consequências desta febre pela construção mecânica, artificial, que contraria a pureza original:

quase sempre gaivotas

acidentadas dopadas

decapitadas pela velocidade

excessiva de drones

(…)

os naturalistas auxiliavam

como podiam

mas os óbitos sucediam-se

a uma cadência exagerada

  

Impõe-se, pois a questão:

que linhas que rotas migratórias

que futuro?

 

Para os pássaros, isto é, para nós, isto é, para o país, isto é, para a poesia, pássaro puro quase extinto.

Quase.

E, no entanto, perante a inação é a arte que se resgata a si mesma, e tudo volta ao início num movimento perpétuo circular, o pulsar inato do desejo do voo.

Assim, a poesia vira-se para si mesma e desenvolve o tema lançado da epígrafe, o tal segmento de verso de Ruy Belo, o puro pássaro é possível, para falar de si mesma, e mostra que a leitura da epigrafe de um poema faz nascer outro poema em diálogo com outras artes, como o jazz ou a pintura.

É neste desenho, nascido da vontade de liberdade/ palavras simples, ou seja, do regresso à pureza original do verbo, que a oscilação entre o sonho e o pesadelo, a vontade e o temor, o futuro e o presente que se assume a importância do voo:

afinal voar é contrariar

o ruído da caçada

(…)

nós aves de cinza

quase morremos

de sede

 

Quase.

A saciedade faz-se anunciar pelo fonema, pelo embrião, pelo início, pelo ovo.

Pelo pássaro possível.

[Texto: Denise Estrócio]