Celebrar o Dia Mundial da Poesia

12 poemas que 12 autores publicaram em livros editados pela On y va. Com eles celebramos hoje, 21 de Março, o Dia Mundial da Poesia.

Os autores são José Carlos Barros, Manuel Matos Nunes, Liyanis González Padrón, António Manuel Venda, Rodolfo Miguel Begonha, Ana Sofia Brito, Eduardo Jorge Duarte, Paulo Rosa, Paulo Correia, José do Carmo Francisco, António Souto e Marco Mackaaij.

 

 

POEMA

 

Até à praia vinham do mar alto, às

vezes. Traziam cordas e cigarros, lenços

e perfumes, óculos e usos

tão diferentes. Misturavam tudo nos copos,

dançavam em cima das mesas, partiam

vidros, pediam em voz alta

mais cerveja, música, vinho, tiravam

droga dos bolsos fundos. Tinham sempre

dinheiro para trocar por um corpo, e

depois um corpo para trocar por

dinheiro. Faziam tatuagens nos

braços, atavam os pulsos que

cortavam, contavam segredos até

de manhã. Nunca se cansavam.

José Carlos Barros, de Estação – Os Poemas do DN Jovem (ed. On y va, 2020)

 

 

VAN GOGH NA NOITE ESTRELADA SOBRE O RÓDANO

 

Pinto a noite estrelada da mesma maneira

que uma jarra de girassóis –

pondo na tela a expressão interior

do real infinito que os olhos me mostram.

Nesta noite, à beira do Ródano,

o mistral decliva dos montes

e sacode o frágil tripé do meu cavalete.

Estou de estômago vazio. Tarda em chegar

a carta de Théo com os duzentos francos

que lhe pedi, e até lá só uma refeição por dia

me é permitido tomar. O aluguer e a mobília

da Casa Amarela levaram o meu pouco dinheiro,

o preço das tintas torna-se incompatível

com os meus desígnios de artista.

Uma ferida alastra-me na alma,

já sinto o tiro que mais tarde ou mais cedo

darei em mim mesmo.

Fui Narciso nos auto-retratos, pintor

de mineiros e camponeses agarrados ao chão,

mas hoje, nesta noite de Arles, na margem

dum rio que corre para a claridade do sul,

solto-me da terra e subo às esferas,

os meus pincéis finalmente guindados

à incandescência longínqua das estrelas.

Manuel Matos Nunes, de Cadernos do Verão (ed. On y va, 2021)

 

 

CELEBRAÇÃO

 

Sonhas

que acordas noutra cidade

 

Registas a madrugada

sem que nada impeça o teu desvelo

 

Sonhas que tens uma pátria

que alguém se alegra por ti

pelo teu semblante

pelo teu sotaque

pelo teu coração limpo

a tua prudência

 

Repetes o teu nome

com a vertigem de um morcego

como quem se pendura

antes de morrer

e beijas com devoção a cruz

que te ofereceu o avô

 

Fazes o que nunca, jamais

e quase sempre fizeste

– sonhas a cidade em que te sonhas –

 

É uma cidade carnívora

uiva dentro da casa

 

Sabes que sonhas o que sonhas

para que não te cerque com as suas garras

outra cidade

que acorde

e celebre

o mesmo sonho antes de ti

Liyanis González Padrón, de O que Foi Cidade (ed. On y va, 2022, trad.)

 

 

AS FOGUEIRAS CLANDESTINAS DO GIGANTE

 

junto ao mar

próximo de uma rocha

onde num dos livros

em tempos

meti uma bruxa a pescar

lembrei-me de um velho marinheiro

quando percebi que o barco

que observava

ia ficando pequenino

 

talvez já estivessem

a avistá-lo lá das áfricas

do outro lado

na mesma praia perdida

de todos os mapas

a praia de que uma mulher

tão inacreditavelmente bonita

me tinha falado

havia já tanto tempo

 

se olhasse para trás no areal

eu

se eu olhasse

iria dar de caras

com a serra dos dinossauros

talvez até

(se o tempo fosse de azar)

com alguma fogueira clandestina

de um gigante

 

lembrava-me de tantas fogueiras

das que tomavam a serra

quando o tempo tinha sido de azar

e dizia sempre

de cada vez que acontecia

que era uma fogueira clandestina

de um gigante

como se conhecesse

o gigante

como se a fogueira

fosse clandestina

como se a serra

ardesse

por culpa do gigante

António Manuel Venda, de O Cão Atravessa a Cidade (ed. On y va, 2020)

 

 

QUANDO O LOBO REZA

 

que me abençoe

o voo da águia

que me abençoe

o toque do pica-pau

que me abençoe

o vasculhar do ouriço

que me abençoe

a fuga do musaranho

que me abençoe

o serpentear da víbora

que me abençoe

o salto do sapo

e que toda a resiliência

simbolize a minha possibilidade

entre presságios murmurantes

de ventos nas garras rochosas

esquecido que fui

pelo deus de todas as criaturas

Rodolfo Miguel Begonha, de Respiração (ed. On y va, 2019)

 

 

AVESSO SENTIDO

 

É do cimo da lua

que te olho, meu amor

pois que lá em baixo

o chão está gasto

de seguir os teus passos em redor

sempre, e sempre pela mesma rua.

 

É do cimo da lua

pasmada, que te espero

mas não é porque quero

que sou inteiramente tua.

 

Cruel é não poder resgatar-te

a minha própria alma

que é tão faminta de amar-te

não há esperança, nem paz, nem calma.

 

Não é por querer que te espero

nem por querer subi ao cimo da lua

meu amor, não é por querer que te quero

é por loucura, que minh’alma é tua.

Ana Sofia Brito, de O Homem do Trator (ed. On y va, 2022)

 

 

JUDAS

 

Nunca estamos verdadeiramente sós…

Estamos com os outros nós,

Os nossos eus desconhecidos, renegados.

E se mesmo assim somos só nós sem saber da Lua,

Vamos mal acompanhados

Pelo silêncio da rua.

Eduardo Jorge Duarte, de O Intervalo entre o Raio e o Trovão (ed. On y va, 2019)

 

 

SAUDADE

 

O aroma do pão a sair do forno

O sabor incomum, particular, da farinheira

O toque no ombro do amigo de infância

A sinfonia que a Natura compõe na manhã clara

O deleite de olhar a serra verde na redoma azul

A mansidão dos ribeiros a encantar rouxinóis

A frescura da água da fonte a mergulhar na boca

O trato gentil do serrenho apedeuta.

 

Só de longe

Os olhos conseguem ver

As letras com que se escreve

A palavra saudade.

Paulo Rosa, de Um Tributo a Monchique (ed. On y va, 2022)

 

 

MARGEM

 

sempre fui à margem

até ao limite de mim

 

e continuo imóvel

mar por companhia

a minha língua de sal (a língua salgada)

lambendo a pele

imagens que desfilam

eu

pés afundados numa fenda

de conchas limpas

mar             chão

 

depois os longos passeios

o mapa do naufrágio

fundões que me levaram

a beber litros de água

litros

a cabeça mergulhada

Paulo Correia, de Ornitologia (ed. On y va, 2021)

 

 

19 (da série Breves Poemas)

 

Estou na ‘Pátria da Chuva’ de Fernando Alves, entre Cardigos (Santarém) e Amoreira (Castelo Branco), perto do pinhal e da ribeira, lugar onde não chega o eco da vitória do Sporting Clube de Portugal no Campeonato de Futebol de 2020/ 2021.

Só a Antena 1 por Nuno Matos faz vibrar o silêncio e o frio da noite; o dono da casa atirou cinza para as brasas e não há Jeropiga da Beira ou Vinho do Porto para celebrar.

Afinal, «os mortos empurram os vivos» (Herberto Helder) e a foto de 1928 tem a chave das lágrimas em júbilo: Cipriano dos Santos (marinheiro), Jorge Vieira (operário) e António Penafiel (marquês). É o carácter da Nobreza na nobreza de carácter.

José do Carmo Francisco, de Afinal (ed. On y va, 2021)

 

 

NA MINHA ALDEIA

 

Na minha aldeia de manhãzinha

saía-se à rua ao toque dos

sinos em chamamento

e vinham mulheres

mulheres-vizinhas

vestidas de missa e naftalina

e os homens dormidos chegavam após

com o domingo nos bolsos e

chapéu a preceito

 

dizia o prior

o Senhor vos acompanhe

 

e fazia-se a praça no regatear de

gestos caseiros e molhadas de

grelos a cinco mil réis

a troco de nada no café da esquina

matava-se o bicho e

a semana inteira em falares usados

 

e a minha aldeia era toda minha

e eu menino ainda aquele povo todo

António Souto, de O Milagre do Entardecer (ed. On y va, 2019)

 

 

NEGOCIAÇÃO DE PAZ

 

Tu, ó corredor diletante, cansado da tua

sabática voltinha a duas patas ao redor de Silves

e a quem ladro de corpo e alma, deves pensar

que sou apenas uma rafeira asselvajada.

 

Mas a nossa tradição oral tem mantido viva

não só a história das nossas vitórias caninas

seguidas das nossas inevitáveis derrotas,

como também a das vossas, ditas humanas.

 

Não penses que com palavras mansas

e bárbaras – quantas línguas queres experimentar? –

conquistarás o direito de atravessar incólume

as obras no Jardim da República.

 

Sabemos ambos o que aconteceu quando

antepassados teus do Norte da Europa invadiram

o Fórum Romano. Um tetractavô meu acabou a vida

acorrentado numa quinta à beira do Reno.

 

Ainda te relatava a desventura de uma dictavó

que, fiel até ao fim, seguiu Al-Mutamid até Agmate

sem deixar rasto na sua poesia (ao contrário das

gazelas de Silves, agraciadas com a eternidade).

 

Ou a de um hectavô, abatido sem dó pela GNR

por defender heroicamente o seu dono corticeiro.

Mas a minha mensagem para ti, forasteiro,

há milénios que é a mesma: Não passarás!

 

E mais, ensinarei a todos os meus filhotes como

rosnar e ladrar às canelas dos teus. Ouviste?

A menos que tragas uma apetitosa oferenda de paz.

Nesse caso, poderás estender-me a mão. Talvez…

Marco Mackaaij, de Pequeno-almoço com Billy (ed. On y va, 2022)