Poemas preciosos, cada um o resultado de um momento efémero

Texto de Clara Andrade, directora da Biblioteca Municipal de Lagoa, sobre «Quando Escrevo» (ed. On y va), de Graça Candeias; suporte da intervenção em Monchique na apresentação do livro (Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos), a 16 de Novembro de 2024

 

«Quando Escrevo» é o livro de poesia de Graça Candeias.

Natural de Monchique, Graça Candeias é licenciada em Educação de Infância, pós-graduada em Educação Especial e professora nesta área. Tem de ser uma pessoa de sentimentos fortes e coração grande e, portanto, poeta.

A escrita, diz, é uma prática sua de há muitos anos, embora se tenha dedicado mais assiduamente nos últimos cinco por causa da dor e das perdas pessoais sofridas. Realmente, a escrita costuma jorrar mais abundantemente quando o sofrimento nos assola, quando a alma se encontra ferida, em carne viva. Ou, então, quando a felicidade nos toma exuberantemente. Parece-me. Não, tenho a certeza!

Este é um livro intimista com 71 poemas líricos que expressam o mundo interior e a subjetividade da poeta. O universo dos seus sentimentos, anseios, desejos, inquietações, vivências, memórias, receios…

E é através da escrita, feita na primeira pessoa, que nos é oferecida a sua visão do mundo, visão poética e musicalmente elaborada onde o estético se vai afirmando verso a verso, poema a poema.

São poemas com versos livres que não seguem um padrão métrico definido nem obedecem a formas fixas, como é comum na poesia que se faz atualmente.

A poesia, enquanto expressão artística mais cultivada em todo o mundo, é uma atividade fundamental da experiência humana. E porque junta a musicalidade à expressão subjetiva, então os poemas são para ser cantados ou ditos em voz alta. Por isso vou entrar na poesia de Graça Candeias pela leitura do primeiro poema.  Poema que inaugura uma das temáticas do livro – a própria escrita – e cujo título «Quando escrevo», intitula também o livro.

Diz assim (página 9):

 

Quando escrevo
 
Escrevo.
Convoco palavras.
O meu pensamento
voa por aí,
um pássaro livre.
Escrevo
o que estou a sentir,
sem nunca deixar de existir.
Quando escrevo
a solidão,
tento inverter a razão.
Sou maresia
num mar agitado.
Sou pessoa
em poeta transformada.
Sou um risco
incalculado.
Sou o eu
que está ao teu lado.
Desapego-me de imperfeições
e reconciliações
com o passado.
Quando escrevo,
revelo o sentimento
do acontecimento.
E no momento de terminar
sinto um vazio
a chegar.
O que me dá prazer,
verdadeiramente,
é voltar a ler
e pensar que quem escreveu
foi outra pessoa,
não eu.
E quando deixo de escrever…
O que irá acontecer?
Não quero permitir-me
saber.

Este é um poema que nos fala do processo de escrita, do efeito que a escrita tem na autora. No impulso irresistível e no prazer que a leva a escrever, problemática que nos coloca perante a grande questão sobre a escrita e o ato de escrever:

Por que razão nos sentimos impelidos a escrever?

Ou seja, porque escrevemos?

E a autora dá-nos neste poema muitas respostas. Encantada com as palavras, diz-nos que ao convocá-las para a escrita o pensamento se liberta e se torna um pássaro livre. É um processo de metamorfose que afasta a solidão, que acalma o seu mar agitado, de tal maneira que ao transformar-se em poeta se aperfeiçoa como pessoa e se reconcilia com o passado. Ao escrever vê o que sente com mais clareza, com mais verdade. Os encontros com a escrita são, então, momentos onde a sua singularidade se revela, já que são encontros consigo mesma e com o que de mais autêntico reside em si. E a escrita enquanto exercício a que não quer ver o fim, já que o fim do escrever trará talvez o vazio e o sofrimento.

E segue assim por outros poemas, revelando o poder das palavras, no encantamento, na iluminação, na tentativa da superação dos limites do humano e da dor.

São sentires sobre o ato de escrever, do escrever poético, que, como já referido, tem subjacente a questão do impulso, uma espécie de ordem de obediência a uma voz, mais ou menos urgente, que se quer fazer ouvir, que se quer fazer escrita. Que se torna escrita.

É, como diz Patti Smith, no seu livro «Devoção», na página 125:

«Porque escrevemos? Pergunta em uníssono o grande coro de quem escreve.

Porque não nos podemos limitar a viver.»

Sim, é a poesia como tentativa de superação da vida e das suas circunstâncias limitadoras, da crueza do aqui e do agora. Sim, é verdade, queremos mais. Sim, Graça Candeias, com os seus poemas, quer mais, quer mais do que viver.

Diz: «sem palavras não viverei./ Sinto que deixarei de existir.»

Mas caminhando passo a passo pela sua poesia, vemos que outro tema perpassa a maioria dos poemas: o amor, o mais preferido e efetuoso dos sentimentos humanos. O amor é, tal como na literatura universal em geral e na poesia em particular, um dos temas principais deste livro. É o amor o tema maior que transparece na musicalidade da poesia de Graça Candeias. É o amor que nunca nos cansamos de evocar ou de ver evocado pelos poetas.

E vem-nos à memória Camões, o nosso grande poeta, de quem estamos a comemorar os 500 ano do seu nascimento, e o belíssimo e incontornável poema «Amor é fogo que arde sem se ver,/ é ferida que dói e não se sente…»

De facto, o amor sempre foi e sempre será uma das principais temáticas das diferentes linguagens artísticas. Entre todos os sentimentos, o amor nas suas diferentes expressões é o que mais aconchega o coração humano. O amor, esse sentimento insondável, fonte das mais diferentes emoções e responsável, também a autora o diz, pelo aperfeiçoamento humano. É uma manifestação do melhor que constitui a humanidade, tendo expressão literária universal em qualquer cultura. São tantos os autores que evocaram o amor, e nem por isso ele caiu no lugar-comum, o que prova que, apesar de ser um tema repetido e recorrente, o amor, esse sentimento fascinante e inesgotável, terá sempre muito para dizer sem nunca perder a sua infindável grandeza.

Também Graça Candeias encontra o amor nas palavras, porque a poesia tem poder e dá poder às palavras. Elas transformam-se em encantamento e ajudam a superar a dor, a dor que é o reverso do amor, uma condição trágica e intrínseca, como o diz a filosofia popular: «Quem se expôs a amar, expôs-se a padecer.»

E do amor também não se pode desligar o jogo da sedução, como acontece no poema «Sereia», deste livro. Poema onde é tratado o tema do poder da mulher no que toca à sedução, habilidade que, dizem as más-línguas da tradição judaicpo-cristã, foi a «origem» do pecado original e da queda de Adão e da própria Eva e da Humanidade inteira:

O poema é este (página 48):

 

Sereia

 
Fizeste de mim
a tua ninfa,
e deusa,
e sereia.
Enquanto a quimera
perdurar,
serei tua.
Atravessarei oceanos.
Enfrentarei Tálassa e Tétis,
e outras deusas
que de mim se querem apoderar.
Mas serei tua.
E naquela praia
de águas cálidas
em que te fizeste dono,
é aí que vou aparecer.
Entoarei o meu canto
para te seduzir
e encantar.
Não te apaixones
por mim.
Metade de mim é mulher.
A outra metade também.

 

Neste poema, o amor é vivenciado como um sentimento que pode não passar de um sonho, de uma quimera, e que a todo o momento pode terminar. Este amor que parece profano, terreno e carnal é, contudo, também sagrado e universal, porque a sensualidade e a sedução são a expressão divina do feminino. O poder do feminino. Poder que no poema adverte para o perigo da própria sedução: «Não te apaixones por mim.» E termina de forma bela, enigmática e desconcertante: «Metade de mim é mulher,/ a outra metade também.» Evocando ao mesmo tempo a beleza, o mistério e o perigo da sereia (lembremo-nos do irresistível e fatal canto das sereias na viagem de Ulisses) e a beleza, o mistério e o perigo da mulher.

Mulher e sereia são uma e a mesma, afinal.

Mas no livro há outros poemas, tantos, onde o amor é tratado pela autora nas suas diferentes facetas. Trabalhando a linguagem, a poeta procura revelar a sua dimensão terrena, carnal, mágica, divina, assim como o seu lugar no coração de cada um e no seu próprio coração.

E fala-nos do sofrimento provocado pela ausência do ser amado, da saudade. Saudade que contém em si uma mistura de alegria e tristeza. Alegria pelo bem e pela felicidade vividos, sofrimento porque esse bem se perdeu. O amor que parte e a solidão que fica e a que não se pode escapar quando o ser amado partiu e não volta mais. Está persistentemente presente na poesia de Graça Candeias o sentimento de perda desse alguém muito amado que já não está e cujas memórias ficaram. «Ainda oiço o eco das tuas gargalhadas… quero que me ensines a ter coragem…continuarei a pedir-te para ires comigo ver os aviões…» E, sim, a saudade, o amor do outro como o espelho em que nos vemos, a saudade de um amor vivido.

E também essa espécie de alucinação que o amor é, o desejo físico, a plenitude do amor vivido a dois e o seu enorme poder transformador.

O poder e a doçura das palavras, o poder da palavra «amo-te», que encerra um dos poemas. Uma palavra que se basta a si própria de tão grande que é, que abarca a infinitude: «Uma só palavra. Isso bastaria.»

Outro poema fala do amor face à imperfeição deste mundo e de ser ainda capaz de desejar, de encontrar uma razão para caminhar, da coragem de viver e fazer o caminho que há para fazer e de «sem receio atravessar o deserto».

Sim, porque o amor é para os corajosos, porque é preciso coragem para fazer frente à vontade e ao desejo «de partir para encontrar-te» e «cair na terra gélida». Porque é preciso, apesar de tudo, continuar a viver.

A poesia de Graça Candeias é também lugar de lembrar, de contar a história do amor, do encontro, do nascimento desse amor e, novamente, da perda. O amor na sua ligação inquestionável com o tempo, com a vida, com a morte.  Porque o amor aspirando ao eterno, mas realizando-se no tempo e na vida de todos os dias, tem com a morte afinidades. O amor, a vida e a morte vivem «de mãos dadas», diz. A literatura sabe que sim, veja-se Romeu e Julieta, Tristão eIsolda, Simão e Teresa…

É a intensidade de um sentimento sem fim face à brevidade que a vida oferece.

E a dor, a paixão avassaladora, a melancolia. A saudade do amor ausente ou do amor que findou, a tristeza, a desilusão, tudo isso faz parte do amor e da poesia de Graça Candeias. «Pudesse eu escrever-te um poema… pudesse eu ir ao céu… Subiria tão alto e gritaria o que és para mim. Pudesse eu embalar-te no meu enlaço e voltar a sentir a tua companhia», diz no poema «Amor».

E num outro: «Onde estás? Já não te avisto». A pergunta evoca e chama outra pergunta, a mais humana das perguntas: o que é viver?

Refiro também poemas onde se evoca a procura do amor verdadeiro e a loucura, a inquietação, a perplexidade de «gostar sem saber porquê», o mistério do amor e o sentido que inexplicavelmente dá vida. E o desejo: «Quero tocar-te, ouvir-te o coração, juntar as nossas palavras». Os beijos, os corpos que se envolvem e amam, a surpresa do amor inesperado que acontece e que é preciso alimentar e viver intensamente, o amor no seu lado de prazer e no seu lado de dor «num mar sem fim e sem fundo». A dor da espera, a impermanência, os amores que partem, os amores que chegam, a disponibilidade renovada para o amor e para o que está para vir, para a vida.

E ainda as palavras que se guardam, que nunca se dizem. Mas também a felicidade: «Encanto-me quando olho para ti e te digo o que sinto»; é o amor sem magoar, ou quando o amor é bondade e compaixão.

Noutros poemas, é a impossibilidade de entender os sentimentos. De saber o que o amor é, o modo misterioso como se apossa do eu, como o eu se perde de si e deixa de saber quem é. As formas que pode tomar, a coragem da entrega, o desejo, o jogo do prazer, da partilha ou, por outro lado, a traição, o engano, a dor do amor não correspondido.

O amor, esse mistério insondável, difícil de desvendar, e que a poesia de Graça Candeias aflora, aponta e mostra, através da linguagem poética, que é o modo mais belo e mais verdadeiro de dizer o que está para além e acima da linguagem que usamos quotidianamente; além da lógica e da coerência; e que pretende, sim, significações e sentidos figurados que ocultando o sentido o pretende ampliar, abrindo-o à interpretação de cada leitor.

Os poemas escondem as suas significações e são obra do acaso, da imaginação e da disposição inesperada do poeta. São, por isso, preciosos. São o resultado de um momento efémero. Cada um. São arte. São beleza.

Beleza da palavra que, aliada a uma musicalidade secreta, existe para dizer o indizível e para nos deleitar.

Para terminar, deleitemo-nos com o poema «Imensidão» (página74):

 

Imensidão

 
Já rendida na solidão
de tantos momentos,
já rendida recomeço.
Dissipo-me na imensidão.
Tudo e todos desconheço.
Pelos meus passos
caminho
em cada adormecer,
e não desmereço.
Espero o silêncio que aninho
e é num breve instante
que adormeço.
Se porventura transbordar
deste meu sonho,
estremeço.
E se entre palavras me lembrar
do meu próprio eu,
aí sim,
na imensidão,
aí sim me despeço.

 

Graça Candeias, parabéns e obrigada!

 

 

[Texto: Clara Andrade]
30.11.24