Um desafio

Texto de Carlos Almeida, de suporte à apresentação do livro Gralhas, de Eduardo Jorge Duarte (ed. On y va), a 4 de Dezembro de 2021, em Monchique, no edifício-sede da Junta de Freguesia (Sala Manuel Martins)

 

Foi com muito prazer e honra que aceitei o «desafio» proposto pelo Eduardo Jorge Duarte – o meu amigo Edu – para apadrinhar a apresentação do seu novo livro de poesia, Gralhas, publicado pela editora On y va. Salvaguardo, contudo, alguns pontos prévios que dão corpo ao facto de classificar esta minha intervenção como um autêntico «desafio»:

  1. Sou suspeito para falar/ escrever sobre as obras ou textos do Eduardo, uma vez que sou um amigo de longa data e, também, sou um admirador daquilo que tem produzido. Portanto, à partida, as minhas opiniões surgem enviesadas por estas circunstâncias.
  2. Não sou um especialista em literatura, muito menos no que se refere à poesia. Aliás, mantenho uma relação complicada com este género literário desde os tempos do Ensino Secundário, quando as minhas interpretações de poemas de Fernando Pessoa ou Cesário Verde não correspondiam, com alguma frequência, ao que era pretendido pelas professoras de Português.
  3. Apesar de alguma frustração, com essa lacuna aprendi uma lição que só após a publicação de O Intervalo entre o Raio e o Trovão, do Eduardo, em 2019, coloquei em prática: não se pode ler poesia com os olhos que dão para o cérebro racional, isto é, de modo estritamente analítico e literal, mas com os olhos que iluminam a alma e suscitam o sentimento (cérebro emocional). O Eduardo fala-nos disso mesmo no poema intitulado «Poema» (p. 86): Poema é a arte do sensível/ Que nos resta./ A última coisa que se presta/ Ao impossível. 
  4. Longe de procurar realizar uma crítica literária da obra (julgo que facilmente encontrarão pessoas mais competentes para o fazer nesta sala), tentarei falar-vos francamente sobre algumas particularidades de Gralhas, na perspetiva de um mero leitor. Este intento faz jus à visão do autor que, reiteradamente, tem referido que «quando uma obra é lançada, deixa de ser propriedade do autor para se tornar algo do leitor».

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No que se refere à capa, o título Gralhas, acompanhado por três aves de rebordo escuro, alude aos pequenos corvídeos que habitam a maior parte do território nacional. Porém, no primeiro poema, que de resto dá título à obra, compreendemos que, afinal, se trata de uma palavra polissémica, ou seja, que «possui vários significados contidos numa mesma forma gráfica e fonológica». «Gralhas» enquanto aves passeriformes e «gralhas» enquanto erros numa redação. Do outro lado, a contracapa é um deleite de três parágrafos sobre esta composição de poemas do Eduardo: um «conjunto de todos os estados que a sua atmosfera humana pode conhecer em dias distintos, enquanto procura situar-se no mundo e situar o outro em si mesmo». Por aqui, percebemos logo que a monotonia da palavra, pelo verso, não nos irá importunar ao longo das cerca de 132 páginas que albergam os 116 poemas.

Uma composição que, na verdade, é um exercício de altruísmo, de empatia e de inteleção. Altruísmo, porque o autor escancara-nos as portas da sua mente, sem nos solicitar nada em retorno: os seus amores e as suas paixões, os seus conflitos internos, os seus momentos de solidão e a força do elo que existe com a sua terra natal – Monchique. Empatia, porque encontra no outro uma projeção de si mesmo, como no poema «Sina» (p. 106): O velho sou eu,/ Sou eu, sim,/ Com toda a confiança,/ Enrolado no cachecol/ A queixar-me à Polícia de mim./ Quero voltar à criança/ Que me atirava bolas de futebol/ Para dentro do jardim. Inteleção ou inteligência, pelo modo como «brinca» com palavras, conceitos e ideias nos versos de poemas como «Gralhas», «Mecânica lamechas», «Assassinatura», «Um rapaz» ou «Abstracção».

A fim de aguçar o apetite para o conteúdo da obra, e para não tornar esta exposição demasiado enfadonha, propus-me analisar os seis poemas que mais impacto tiveram nas vertentes racional e emocional do meu cérebro. No fundo, trago-vos os textos que mais sentido fizeram do ponto de vista lógico, mas que, concomitantemente, mais sentimentos despertaram. Ressalvo que, pelo carácter subjetivo da interpretação, não implica que sejam necessariamente as melhores construções poéticas do livro. E foi aqui que começaram os meus problemas: fui tirando as minhas notas e, no final da primeira leitura, tinha 28 poemas selecionados. Após nova triagem, fiquei com um «Top-10», portanto, ainda aquém do meu propósito. Com algumas reticências pelo meio, cheguei aos meus seis preferidos: «Gralhas», «Pergunta à Alice», «Minotauro», «Memória», «Assassinatura» e «Aposta».

Em primeiro lugar, seria impossível não referenciar o poema inaugural: «Gralhas» (pp. 9-10). Conta a história de um miúdo que desafiou a liberdade concedida pela professora para redigir um texto sobre o que lhe aprouvesse: As palavras estavam/ Desenhadas a preto,/ Reunidas em bando,/ Tinham sombras nos bicos,/ Asas nas sílabas,/ Faziam muito barulho,/ Num canto rouco/ Que quase não se deixava perceber./ (…). A criatividade, transcendendo a liberdade, resultou num desenho de «gralhas» (pássaros), erros assinalados a vermelho pela professora. Este é um poema muito bem elaborado, que joga habilmente com a polissemia e que, no meu ponto de vista, aborda um tema bastante contemporâneo: o facto de o sistema educativo vigente ser considerado por muitos professores e educadores como obsoleto, na medida em que a rigidez de muitos currículos ou tarefas (não todos, obviamente) desvaloriza a diversidade de aptidões, expectativas e ritmos de aprendizagem dos alunos.

«Pergunta à Alice» (p. 24) é o meu poema preferido da obra. Na ocasião em que o Eduardo publicou o poema numa rede social, eu havia comentado com ele – não sei se está recordado – que se um dia eu e a Patrícia tivéssemos uma filha, lhe daríamos o nome Alice. Se isso acontecesse, iria imprimir o poema e emoldurá-lo no quadro dela. Permitam-me recitá-lo:

 

Pergunta à Alice

Alice,

Quem te disse

Que a realidade é coisa oca?

Que sem imagens

Todas as paisagens

São rostos sem palavras na boca?

Foi o relógio ou um coelho atrasado

Quem te encolheu o mundo

E respondeu, apressado,

Que a eternidade dura apenas um segundo?

 

Neste poema, com 10 versos e 44 palavras, o Eduardo consegue evocar a famosa obra infantil As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Charles Lutwidge Dodgson, publicada em 1865 sob o pseudónimo de Lewis Carroll, e, simultaneamente, a Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein (1915). Einstein revelou que seria possível tratar, matematicamente, o tempo como a quarta dimensão, formando o tecido espaço-tempo. A presença de objetos com massa curva esse espaço-tempo, sendo tanto maior a distorção quanto maior for a massa do objeto. Por isso, no Sol o tempo passa mais devagar que no planeta Terra. Reparem, então, nos últimos quatro versos: Foi o relógio ou um coelho atrasado/ Quem te encolheu o mundo/ E respondeu, apressado,/ Que a eternidade dura apenas um segundo?: ao se encolher o mundo de Alice, o tempo flui muito mais rápido: a eternidade dura apenas um segundo. Na minha opinião, aliarmos todo este racional à simplicidade e à sonoridade do poema torna-o absolutamente genial.

Em «Minotauro» (p. 31), o autor socorre-se da mitologia grega para fazer uma crítica implícita ao homem (género masculino). A história que dá origem aos versos reza que Teseu, um aclamado herói grego, foi a Creta para enfrentar o Minotauro que habitava o labirinto construído por Dédalo: quem nele entrasse, nunca mais sairia e seria devorado pelo Minotauro. Antes de partir, Teseu foi ao Oráculo de Delfos para saber se triunfaria. A resposta do oráculo foi que deveria ser ajudado pelo amor para vencer o monstro. É aqui que entra Ariadne, filha do rei Minos. Ela prontificou-se a ajudar se, posteriormente, o herói se casasse com ela em Atenas. Teseu viu em Ariadne a hipótese de ser bem-sucedido na sua missão. Ariadne deu-lhe uma espada e um fio de lã para que ele pudesse matar o Minotauro e encontrar o caminho para sair do labirinto. Foi a própria Ariadne quem segurou na outra ponta do fio. Teseu venceu o bicho e conseguiu sair do labirinto. Regressou a Atenas com Ariadne: Quantos de nós enfrentam o touro escondido/ Num palácio de cobardia?/ Que herói desconhecido/ Em nós arriscaria/ Matar por amor a Ariadne o animal/ E encontrar um caminho vicinal/ Para tornar à luz do dia? É um poema estupendo e que coloca em causa as atitudes e os comportamentos animalescos dos homens, tantas vezes perdidos num labirinto de confusão intrínseca. A mensagem que dele retiramos é de que no amor, na genuinidade e na sinceridade os homens poderão sair da escuridão e tornar à luz do dia. Como último comentário a «Minotauro», é importante enfatizar que a apreciação crítica aos homens não se esgota no poema. No âmbito da mitologia grega, há quem defenda a premissa de que o amor que Teseu sentia por Ariadne tinha o seu quê de conveniente, não se equiparando ao amor dela por ele.

No poema «Memória» (p. 46), o Eduardo parece dirigir-se a alguém cujo esquecimento tomou o lugar da recordação: – O que é a memória? –/ Perguntas tu, no ar espesso/ Do pátio, com a trémula incerteza/ Que existe nas miragens. Com a paciência com que se cuida de alguém muito querido, relembra todas as circunstâncias em que respondeu à questão O que é a memória?. São versos de afeto, dedicação e altruísmo, exacerbados pela invenção das respostas dadas nas ocasiões anteriores: Enumero os dias, as semanas, os meses,/ Se era Outono, Primavera, Inverno, Verão,/ E o que te conto já não é recordação,/ Mas sim uma invenção do que te disse nessas vezes. Esta aparente contradição tem uma justificação psicofisiológica: o esquecimento não é um antónimo da memória, mas um auxiliar da mesma, uma vez que a nossa capacidade de armazenamento de informação é limitada. A aprendizagem e a invenção implicam o esquecimento de alguns factos antigos ou menos relevantes.

«Assassinatura» (p. 81) mostra-nos toda a habilidade do Eduardo com as palavras. Como um malabarista mantém três, quatro ou cinco bolas no ar enquanto rodopia, salta ou se equilibra, o meu amigo pegou nos verbos «Assassinar» e «Assinar» e, em tons de crítica, apontou contra a poesia escrita às três pancadas: Violência ortográfica, maus-tratos à sintaxe,/ Torturas à semântica, métrica/ Sem ética e sem estética,/ Orações divididas/ Pelas mãos ilegíveis e fingidas/ Do diabo. O horror e a frieza dos atos de um assassino psicopata, na pele de um mau poeta, captados em versos. O clímax do texto surge com a poesia subvertida a uma nova literatura, assinada a sangue: Assassinava a língua e assinava:/ E assim gatafunhava/ Uma nova literatura,/ Uma espécie de assassinatura. Cá está, a enorme criatividade do autor imiscuída numa crítica acérrima a quem não respeita a língua portuguesa, a poesia e, ainda assim, crava o seu cunho de autor.

O último poema que abordarei tem como título «Aposta» (p. 114). É um poema de amor, de sorte ou azar e até de dor. No tema «Anel de Rubi», Rui Veloso tenta, ingloriamente, conquistar a amada por via da música: Mas esse teu mundo era mais forte do que eu/ E nem com a força da música ele se moveu. Em «Aposta», o Eduardo fá-lo por via da poesia: Aposto/ Que mesmo que eu tos escrevesse,/ Não ligarias nenhuma./ ‘As palavras são vento que se esquece’,/ Dirias, e que a poesia te aborrece,/ Por poder ser muita coisa e tu só uma. O remate do poema ocorre, mais uma vez, em grande estilo, expondo a cru as dores que decorrem de um amor sujeito às vicissitudes da sorte (ou do azar): Aposto/ O tudo e o nada, a sorte e o azar,/ Que na roleta do coração sempre a girar,/ Os poemas viciados no teu ser/ São dores ainda mais fundas a calcar/ A dor de te ganhar e te perder. Brilhante!

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Em suma, e para não corromper mais a subjetividade da vossa interpretação, congratulo o meu amigo Edu com um valente abraço e destaco o papel da editora On y va, na pessoa do nosso escritor e conterrâneo António Manuel Venda. Aceito as críticas de ser suspeito e um leigo na matéria, mas Gralhas é um livro que nos toca a alma e a razão das mais variadas maneiras. É, sem margem para dúvida, uma ótima sugestão de leitura para este Natal e para um futuro que se encontra por escrever. Caros presentes, senhores e senhoras: recomendo vivamente!

 

[Texto: Carlos Almeida]