A verdade poética dos meus dias

Texto de Eduardo Jorge Duarte, lido na apresentação do seu livro Gralhas (ed. On y va), a 4 de Dezembro de 2021, em Monchique, no edifício-sede da Junta de Freguesia (Sala Manuel Martins)

 

Meus amigos,

Nenhuma leitura é definitiva, nem sequer há leituras mais valiosas do que outras. A leitura de um crítico vale tanto quanto a de um mero curioso. Desde que não se deixe enganar pelo ilógico absurdo, qualquer verdade poética descortinada na decifração de um verso pode e deve fazer frente à autoridade imposta pela realidade do quotidiano, àquela que nos amarra à rotina e ao escandaloso logro que todos os dias alguém nos quer fazer acreditar, repetindo implacavelmente que a vida é como é.

Penso várias vezes na verdade poética na origem do poema que empresta o título a este livro como forma de resposta subversiva ao «a vida é como é!». Com um livro de poesia na cabeça, a vida deixa de ser como é para poder vir a ser o que quisermos que ela seja ou, simplesmente, o que ela poderia ter sido quando entrámos por esse mar de possibilidades adentro a bordo de uma embarcação chamada futuro.

Tendo sempre presente essa ideia de futuro, os poemas deste livro foram adquirindo forma em alturas distintas, mas não muito distante de hoje, muito embora em todos eles seja possível encontrar a sobrevivência do primeiro poema que me lembro de escrever para o Jornal da Escola Primária. Falava sobre o cão e dizia assim: É dócil, obediente/ com o homem vai à caça/ brincalhão, inteligente/ entra em exposições de raça/ Tem um olfacto apurado/ usa o nome na coleira/ e é pronto e atilado/ no trabalho ou brincadeira.

Também é possível dar com o rasto lírico deixado pelas pegadas de outros poemas da adolescência, cujo pudor não me deixa agora revelar, orquestrações líricas sem brilho que podem ter servido para vencer um concurso de poesia no Terceiro Ciclo (fui o único participante), mas que surgiram acima de tudo pela profunda necessidade de conhecer-me a mim mesmo como se fosse um outro, lembrando aquela tirada de Rimbaud que diz «Car Je est un autre.», porque eu é um outro. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, esses versos foram consequentes à urgência de afirmar-me pela negação do mundo à minha volta, negando-me a mim mesmo e à tal cantilena de «a vida é o que é», seduzido não só pela urgência de viver intensamente todas as transformações e deslumbramentos próprios daquela idade, em que toda a realidade parece pobre e previsível, mas também como arma secreta para vingar-me dela, dessa tirania implacável, do seu curto alcance, das suas armadilhas, dos seus desapontamentos, das suas agruras, das suas humilhações, dos seus falhanços e das suas ofensas.

Nestes versos está, como em todos os outros que conhecem ou não a luz do dia pela ação de um livro, um rol de contradições em que é preciso negar e afirmar ao mesmo tempo a realidade e a minha própria identidade, fugindo delas, jogando por vezes às escondidas comigo mesmo para que possa entender este mundo, saber colocar-me mais vezes nos sapatos do outro e, desse modo, conhecer-me melhor a mim próprio. É que ninguém se compreende se não começar por compreender o outro, exercício que nos é, em tantas ocasiões, difícil, caro e penoso, sobretudo nestes tempos em que a poesia é repetidamente julgada como coisa desprezível ou inútil.

Tratando-se de uma fuga dessa realidade ensarilhada em grilhões e precipícios, como em qualquer outro ato de evasão ditado pelo imperativo da liberdade, neste livro há um ponto de partida e um destino, ou pelo menos uma vontade. E esse destino será sempre em direção a este que hoje nos reúne.

E como em qualquer outra fuga, para que possa ser bem-sucedida é preciso contar com a generosidade de uma mão que nos abra portas ou nos indique um caminho. Com a ajuda dos meus professores, e hoje, como noutras ocasiões, posso contar com a grata presença da melhor de todas, enquanto leitor pude perceber o que queria dizer Saramago ao afirmar que «quantas mais palavras conhecermos, mais somos capazes de dizer o que pensamos e o que sentimos.» Foi também graças aos meus professores, à minha família e aos meus amigos, os outros que vivem em mim, que pude fazer da poesia a chave para conhecer emoções. Com eles, aprendi que quantos mais poemas lemos, mais somos capazes de sentir coisas que não sabíamos sentir ou que desconhecíamos que eram assim, como vem dito em versos transcendentes, que se sentiam. A verdade poética dos meus dias, devo-a a eles.

Ciente da exigência que é dar versos à medida protoplásmica dos níveis e desníveis desta serra e dos defeitos e das virtudes deste povo, faço votos, do fundo do meu esforço, para que estes poemas venham também a fazer denodadamente parte da causa coletiva que é a literatura e que sirvam de prova de uma tentativa imanente de dignificar a minha fidelidade às origens, aos meus antepassados de servos da gleba e de malteses e aos amigos que comigo cresceram, constituindo-se a soma possível da paisagem da vida à paisagem natural desta serra. O desafio a que me proponho todos os dias na minha missão de Sísifo é esse, o de acrescentar aos 902 metros do tamanho da nossa alma um palmo suplementar de versos rasos, como se o maciço eruptivo que há 80 milhões de anos deu origem às nossas feições geológicas não parasse nunca de crescer e de ferver dentro de nós, transformando a realidade permanentemente.

Reconheço que esta ambição é uma forma imodesta de me insinuar, despudoradamente, na empatia, na humildade sensível e na autenticidade que cada monchiquense traz nos cromossomas desde o berço, sobretudo porque sei também de ciência exacta que para que um livro exista plenamente é preciso que o autor se retire, deixando-o seguir livremente o seu caminho. Assumindo que assim é, mesmo que seja um visitante indesejado, mesmo que não haja um convite da vossa parte ou mesmo que não seja digno do paraíso desse convívio, acalento a esperança secreta de que quando dois ou mais dos (tantos) aqui presentes estiverem reunidos em nome de Monchique e da poesia, qualquer coisa de verdadeiramente simples, de clarividente e de humano que existe nos versos deste livro possa estar com eles.

Muito obrigado pela vossa presença!

 

[Texto: Eduardo Jorge Duarte]