As vozes de Ketty Blanco Zaldivar

Texto de Manuel Matos Nunes sobre o livro de poesia Quem Anda Aí (ed. On y va), de Ketty Blanco Zaldivar. Manuel Matos Nunes é poeta, ensaísta e investigador do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde.

 

Não é possível explicar um poema ou um livro de poesia. Diz Mário Dionísio no antiprefácio da sua Poesia Incompleta (1966) que na impossibilidade de se atingir tal desiderato teremos de nos contentar «com o trabalho muito mais modesto e certamente muito mais demorado de, por meios diferentes e simultâneos, forjar condições de aproximação».

Assim se tentará em relação a este livro da poeta cubana Ketty Blanco Zaldivar, editado pela On y va em tradução de António Manuel Venda. Trata-se de uma edição bilingue em que os poemas em língua portuguesa (páginas ímpares) surgem ao lado dos originais em castelhano (páginas pares).

A epígrafe retirada da poeta argentina Alejandra Pizarnik – «Não posso falar com a minha voz, mas sim com as minhas vozes.» – introduz o leitor naquilo que é o sentido subliminar da obra: a multiplicidade de expressão, despersonalização ou voz outra capaz de suplantar a voz própria, na esteira, de resto, de grandes vultos da modernidade como Rimbaud ou Pessoa.

O livro abre com o poema que lhe deu o título: Quem anda aí (p. 9). Porta de entrada enfatizada no monóstico «Como atravessar a porta», sugerindo a porta estreita dos Evangelhos (Mateus 7: 13-14), referida por André Gide no seu título La Porte Etroite, lugar de passagem para um caminho que nem todos merecerão ou serão capazes de fazer. «O Reino exige esforço», diz o evangelista, «Entrai pela porta estreita, porque é larga a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela! Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva à vida, e são poucos os que o encontram». Pode não parecer, mais isto também tem a ver com a poesia.

 

Quem anda aí

Há alguém que se parece comigo numa cela escura.
Sei disso, porque abriu no alto uma
janela e a luz revelou o corpo.

Alguém que, presa nos seus muros, descobre
um quarto. O quarto da sua casa.

Acaba por escutar uma voz e o som vibra
como uma pobre reminiscência de outra voz de fora.

É a sua voz que sai de outra boca, que por algum
resquício do seu pescoço goteja enquanto
inutilmente se agarra à maçaneta.

Como atravessar a porta.

Quem é aquela desconhecida que a suplanta.

         

Considere-se na poesia de Ketty Blanco Zaldivar aquilo que comumente é designado como as influências do autor. Ninguém está imune a outras vozes com as marcas indeléveis de antecessores. «Todos somos anões aos ombros de gigantes»: esta asserção de Bernardo de Chartres (século XII), depois retomada por Isaac Newton, exprime a ideia de que nada do que se faz, no domínio das ciências ou das artes, está desligado de saberes e sensibilidades antecedentemente firmados. No poema Recorrências (p. 43), uma aluvião de vozes irrompe metaforicamente no ágape em que o sujeito poético participa: Omar Khayyam, Anne Sexton, Allen Ginsberg, Inger Christensen, Charles Bukowski, Louise Glück, César Vallejo. Vozes miríficas que implicam por vezes uma oscilação entre o ser e o não ser, entre o real e o imaginário:

 

Uma espia na casa da aranha (p.37)

Suspensa por mãos invisíveis,
outra vez as minhas vozes desenham miragens.
Entre a certeza que me arranha
e o oculto centro,
estico a corda. Estou só,
mas estico a corda.

 

Estas dicotomias atravessam os poemas Frases para uma novela que não vou escrever (p. 23) e Canto a mim mesma (p. 27). Atentemos nos últimos três versos do primeiro:

 

Uma história construída com muitas vozes falsas.
Sou a que sou.
Não existo.

 

E no segundo:

 

Canto a mim mesma

Não sou Helena de Troia, mas sou bela,
digo a cada manhã ao espelho.
Não preciso de uma cidade a meus pés,
ou da ruína de uma cidade a meus pés
para me sentir feliz. O meu nome é outro,
o meu nome cravado entre palavras inúteis.
Não sou Helena, mas ao varrer estas cinzas
algo terá sido diferente.

 

O poeta, vivendo e lutando com a sua arte, elevando-a ao ponto em que a mesma seja aviso, denúncia, pulsão solidária ou grito insurgente, será sempre um ser de múltiplas faces. Tal se vê em outras vertentes da poesia de Ketty Blanco Zaldivar, a que se estende ao diálogo com diferentes formas de expressão artística – o kabuki (teatro japonês, poema Kabuki, p. 49), a fotografia (poema Escrito no verso de uma foto de Nobuyoshi  Araki, p. 47), a música (poema Du Pré, p. 61) e as artes visuais (poema Imagem na estampa, p. 75) – e ainda os vários poemas de poetização do quotidiano e de intervenção quase sempre irónica sobre a condição feminina e os estigmas do poder familiar. A este respeito, a figura da mãe (correia de transmissão dos valores da família patriarcal) ocorre em pelo menos três poemas: Para quê (p. 11), Nunca poderei criar (p. 19) e A inocência (p. 77). Vejamos este:

 

A inocência

Amo Deus nos seus desígnios fatais.
E a Virgem, que é como aqueles
que a veneram.
Também amo a minha mãe com as suas loucuras.
E amo-me a mim acima de tudo,
como amo o morcego que dorme
debaixo da minha cama.

 

Ainda que sob o signo da inocência, trata-se de um confronto entre a luz e a sombra: o esplendor do divino face ao morcego correntemente associado à noite e à natureza sombria. Uma dupla figuração da mãe (a de Jesus e a do sujeito poético) converge para um narcísico sentir: «E amo-me a mim acima de tudo». Sombrio era o desígnio de Narciso, debruçado no seu poço, antes de se transformar em flor revestida de cor e luz.

Falando de vozes, é justo que se fale também de árvore. Constituída por raízes, tronco, ramos, folhas e frutos, é talvez a mais perfeita metáfora para o processo de criação artística: aquilo que são as influências recebidas, a formação de um corpus, a progressão para as diversas nuances da expressão em que o belo se dá como fruto. O derradeiro poema da obra tem precisamente o título Uma árvore (p. 97):

 

Devo ficar quieta enquanto nasce uma árvore.
Não posso nem mexer-me se a árvore procura
esticar os seus ramos dentro do meu corpo.
(…)
E outra vez o instinto me implorará que corra,
pássaro louco, sem direção precisa.
Só que mandaram-me permanecer calma,
muda como a terra antes de se converter em
bosque.

 

Quem Anda Aí não é uma obra poética fácil, mas em arte a beleza é por vezes difícil. Tendo começado por citar Mário Dionísio, terminamos com uma referência ao capítulo A beleza é difícil da primeira parte da sua obra A Paleta e o Mundo. Neste capítulo, são citadas as palavras de uma personagem da ficção A Obra-prima Desconhecida, de Honoré de Balzac: «A beleza é uma coisa severa e difícil que não se deixa alcançar assim; é preciso esperar as suas horas, espiá-la, cercá-la, enlaçá-la apertadamente para a forçar a entregar-se.»

Assim é a poesia, tanto no seu processo de criação como no da compreensão que dela terá o leitor. É preciso escrever e reescrever, é preciso ler e reler. Pegando na sugestão do poema, trata-se de tentar perceber a árvore que estende na direção do céu os dedos dos ramos, até que essa árvore cresça e a terra se converta em bosque.

[Texto: Manuel Matos Nunes]
05.03.24