«1968», um olhar

Texto de suporte à apresentação do livro de António Manuel Venda «1968», por Rodolfo Miguel Begonha (Escola Secundária de Camões, Lisboa, 29 de Junho de 2017)

 

Lembro-me de quando há alguns anos o Prof. Eduardo Lourenço – grande pensador da cultura portuguesa – foi chamado a discursar na entrega de um prémio da União Latina (creio), começando por referir: «Estou preparado para tudo, na medida em que não me preparei para nada!» É evidente que só uma grande personalidade como Eduardo Lourenço poderia dizer tal coisa.

Quando fui contactado para apresentar este livro, fiquei quase em choque: por motivos profissionais e pessoais, esta semana e este dia eram dramáticos para o fazer… Portanto, a última coisa que esperaria seria apresentar um livro. Mas, a amizade e a grande consideração relativamente ao autor ditaram que teria de aceitar mesmo sem condições para uma intervenção como gostaria e o autor e o livro merecem. E acabei por trazer esta cábula.

Por falar em amizade… No final do ano passado, numa sessão de lançamento em que participei, o escritor premiado António Tavares (também autarca na Figueira da Foz) lembrou que devia existir uma lei apenas com dois artigos: 1 – Escritores não podem apresentar livros de escritores; 2 – Amigos não podem apresentar livros de amigos.

Não sei se sou escritor… Mas sendo inequivocamente amigo do autor, se essa lei estivesse em vigor eu seria encarcerado, mas não hesitaria. Tenho muito gosto. Perante um compromisso desta natureza, geralmente só «forças superiores» me impediriam de o assumir… Talvez nem os dois dinossauros adormecidos de Monchique, se acordassem.

A (talvez) boa notícia é que li o livro… A segunda boa notícia é que gostei muito.

Se tivéssemos tido uma conversa relativa ao conteúdo desta sessão – eu e o autor –, admito que ele não me dissesse: «Vê lá se elogias o livro!» Acredito que me desse uma outra recomendação, sui generis: «Faz-me um favor, não me elogies demais!»

Em resumo, esta não é a participação que idealizei – todavia, pelo menos dois aspectos contribuem para uma certa ideia de salvação:

  1. Imaginei ser o apresentador suplente do suplente do suplente que era suplente do suplente principal. Isso deu-me alguma sensação de tranquilidade. E (claro está) não imaginei as razões pelas quais os outros suplentes faltariam.
  2. No final da nota do autor contida na contracapa, explicita-se: «Há tantas coisas que não fazem sentido… Aliás, o que é isso de ‘fazer sentido’?»

Sem saber, o António inspirou-me mesmo com esta expressão basilar. Se aprecio as «dúvidas» escritas pelo autor (como veremos), se tenho algum fascínio pelo carácter útil e instrumental da dúvida, esta interrogação encerra a providencial potencialidade de me dar margem de manobra.

 

»»» Sobre o livro

A capa: bem conseguida, sóbria, original.

Os pormenores: medronhos. Parabéns à designer, Alexandra Ramires!

O título, «1968»: é o ano do nascimento do autor. Muito apropriado, portanto.

Este livro não é um romance. A sua natureza não ilustra a extrema fantasia e até a dimensão mágica que surgem em outras obras de ficção do autor, bem urdidas com realidades narradas, quem sabe se com uma pincelada de influência ao estilo de Gabriel García Márquez (entre a realidade e o fantástico).

Reúne uma selecção de 21 textos, diversos, curtos, de fácil leitura e naturalmente bem escritos, publicados em vários órgãos de comunicação social. Percorrem várias fases da vida do autor. No seu estilo próprio a linguagem é cativante, com ritmo e notando-se a inclusão de palavras ou expressões «críticas» cuja escolha vem dar vivacidade ao texto, frequentemente fazendo-nos sorrir. Tem nomes de gente conhecida, outros de gente desconhecida e alguns que ficam por descobrir.

Depois de cada título há um pequeno excerto serve de «aperitivo». Pessoalmente, agrada-me.

Tendo em conta que os textos reunidos neste livro são pequenos, não é adequado explorá-los pormenorizadamente. Sendo assim, a estratégia de abordagem passa por escolher um ou outro, ler passagens marcantes ou ilustrativas de algum aspecto focado e deixar apenas algumas questões em aberto.

O livro contém vários recursos estilísticos, e há geralmente bom enquadramento espacial e por vezes temporal das ocorrências focadas.

Na esfera de acção profissional do autor há evidentemente muitas pessoas do universo da gestão de recursos humanos, e para elas esta é uma obra interessante visto que (além das questões ético-morais) aborda a essência ou componentes importantes da estrutura humana olhada através dos seus comportamentos e posicionamentos, das suas perversões, da corrosão do carácter, dos enganos, da má-fé, das disfunções, das mentiras, das arrogâncias e das respostas e análises face a tudo isso. O livro fala-nos do quotidiano, de interacções, de ocorrências (algumas críticas) do nosso mundo.

«1968» não é um produto comercial tout court: à sua dimensão e propósito, é também alma, é coração, é génio, é intenção, é protesto, é alerta, é partilha, é vida. Agrada-me muito um livro com estas características, independentemente do «refugado» de palavras ou de expressões que revestem as narrações, ou seja, a tal «banda» que acompanha a descrição (como tão bem anuncia o autor na página 101). E agrada sobretudo porque nos fala da vida. E não era John Milton quem referia precisamente que os livros são eles «a própria vida, o sangue dos espíritos superiores»?

Aqui, revemos o discurso que conhecemos do próprio António na oralidade, em conversas, naturalmente refinado e transposto para a escrita. No seu olhar ou na sua captação (como quisermos), salienta-se o aguçado espírito crítico e a mestria na aplicação de requintado humor, ironia (pode ver-se moderna recreação ao jeito dos autores do fim do século XIX/ início do século XX) e cuidada linguagem, com exemplos ao longo de toda a obra. Veja-se dois pequenos exemplos (podiam ser outros):  página 19 sobre as cores do antigo regime e página 78 sobre morcegos. Recorre também ao sarcasmo e a finíssimas dúvidas raiando a retórica. Lembra o mestre da escrita Mário de Carvalho: «Pratique-se a dúvida sistemática. Se o exercício da dúvida produz maus anúncios, pode, em contrapartida, gerar melhores escritores.» A «dúvida» é, em conformidade com a minha visão, um elemento interessante que ocorre neste livro, podendo ser real ou falsa, esta última assumindo um sentido retórico. O recurso à «dúvida» proporciona uma valência positiva ao serviço da leitura, juntamente com uma ideia de «inocência» que por vezes mais não é do que um processo de escrita ardilosa ou estratégica, portanto, nesta dimensão, não inteiramente verdadeira. Podem desse modo ser armadilhas ou desafios para os leitores.

«1968» é também um livro de protesto e de sátira, ao mesmo tempo que conta experiências do autor. O referido humor encontra-se frequentemente ao serviço da crítica. Entrança ocorrências, coincidências (ou não) e situações, numa fusão interessante entre histórias da vida e enquadramentos que muito as transcendem, como por exemplo da história de Portugal (encontramos diversos exemplos).

Passemos leve e rapidamente por uma pequena amostra de textos…

  1. Pelo fim da manhã

Que relação existe entre Oliveira Salazar e o nascimento do autor?

Em 1968, o nascimento do autor é narrado a par com o «estampanço» – a famosa queda – de Salazar «com a própria cadeira». A sua vitória (nascer) coincide com a derrota dessa figura incontornável do século XX (classifica-o na página 8). Temos o triunfo do autor contactando com a luz entre as penedias da serra, no seu ventre, acomodado entre os tais dois dinossauros que refere. Se não move montanhas, move pessoas, agendas e processos porque vai condicionar o seu dia. E temos paralelamente o desvanecer do velho ditador. Por via das dúvidas (direi eu), aconselharia os primeiros-ministros do Portugal democrático a escolherem e examinarem bem as suas cadeiras no dia do aniversário do António… não vá o diabo tecê-las.

Neste primeiro texto encontramos logo o já referido humor e uma determinação ou coragem narrativa no seu estilo directo, nada aborrecido, onde a simplicidade é só aparente. Assim continuará ao longo do livro… Apercebemo-nos de que há uma falsa simplicidade (por exemplo) quando reparamos que no texto do autor nada é dito ao acaso. Há intenções mais claras e outras mais implícitas a descobrir. Precisamente o enlace conferido às narrativas entre transparência, veracidade e honestidade e argúcia e burilada «manha» é um deleite para o leitor.

Esta histórica incidência (nascimento) que tem desenvolvimento com o natural crescimento do autor não é numa das sete colinas de Lisboa, é em Monchique. Subindo, vê-se o mundo. O seu mundo. E poder ver o mundo, acima das fragas misteriosas e das florestas do sul, despertou a sua curiosidade (o que até poderia não ter acontecido), acendeu a dúvida (elemento de progresso), inflamou a força de querer ver mais e de saber questionar. A mesma força interior que o fez querer conhecer mais, avançar por horizontes não cerrados (contrariando assim uma expressão usada por Alves Redol), aberto às planuras do Alentejo ou aos mares dos Algarves, aqueles que vão beijar África. A mesma força interior que o fazia sonhar e elevar-se além das folhagens das árvores do campo, ou quando no recato do seu quarto ouvia relatos desportivos fixado no rádio. E foi precisamente nesta esfera que porventura poderia ter ido mais além… Sem querer beliscar as preferências clubísticas dos presentes, parece-me que em tenra idade o António pode talvez (digo talvez) não ter consultado a melhor bruxa de todas as freguesias de Monchique. Por quê? Porque devotou-se ao Sporting. Mas enfim, são preferências que não se discutem mesmo. Respeito.

  1. Vizinhos, mas de ao pé de casa

A propósito da correcção ou dos erros de expressão, entram em cena as marcas deixadas por uma professora de português nos anos 80, uma verdadeira psicopata. Como é que um dia, na sala de aula, o colega João Lúcio a deixou sem fala? Visualizei a sala. (leitura seleccionada – páginas 31 e 32)

  1. Anormaloides

Talvez um dos textos mais marcantes, pelo significado e pela linguagem utilizada. Como é que o autor lida com as praxes académicas? Evidentemente cada um tem a sua visão pessoal e vivências próprias… (leitura selecionada – páginas 44 e 45).

  1. Políticos, esses animais

Excelente raciocínio jogando com as palavras, com sublime humor vocacionado para a classificação dos políticos. A não perder. Termina em apogeu e com vernáculo bem português. (páginas 56 e 57 – para ler na intimidade, direi)

  1. Fomos a votos

Relato inédito de um jantar consagrado à estranha votação de um candidato português ao Prémio Nobel da Literatura, cujo resultado seria enviado para a Suécia. E aqui faço um parêntesis. António, não deve ser esquecida a promessa: se ganhares o Nobel eu terei um bilhete para a grande cerimónia.

  1. Uma onda, talvez

Sucessos e desconcertos nas Jornadas Ibero-Americanas de Literatura. Contém um diálogo interessante, pelo humor e conteúdo (página 87, uma senhora «na» Comissão dos Descobrimentos).

Ao lermos «1968», compreendemos que a tal questão da contracapa sobre fazer ou não «sentido», não passa de mera provocação. Tudo tem sentido. Mas, mesmo que encontrássemos somente uma busca ou promessa de sentido, isso seria legítimo e até concordante com o ensaísta George Steiner, quando argumenta que «o texto escrito implica, entre o autor e o respectivo leitor, a promessa de um sentido». (in «O Silêncio dos Livros», página 13)

 

»»» Sobre o autor

Ia começar esta parte com um raciocínio alegórico ou metafórico que nos levava a Charles Darwin (imagine-se), mas vou entrar directamente no assunto.

Todos somos únicos… Mas o António surge-me em vários sentidos como mais único do que os outros, como pessoa e como escritor, o que é indissociável, quer seja o escritor o melhor amigo do homem, quer seja o homem o pior amigo do escritor. Seja como for, o António não apresenta tendências para insultar alguém num livro e depois culpar uma sua personagem ou simplesmente o narrador… O que é prova de coragem e de lucidez.

Uma curiosidade em vias de ser desvendada?

Refiro-me a uma muito própria postura corporal do autor em actos públicos. Quem o conhece já o viu certamente como surge na série de fotografias em anteriores obras. Passo a mostrar algumas…

O que quererá isto significar?

Achei que antes poderia ser uma postura defensiva do tipo «falem vocês e deixem-me em paz». Mais tarde, e na sequência da sua metamorfose comportamental, passei a admitir que afinal queria dizer algo como «estou farto de vos ouvir, deixem-me falar a mim».

Todavia, julgo que é uma pose inerente à mais intensa meditação intelectual. Descobri a mesma reclinação craniana e o mesmo recurso à mão como auxiliar junto à face numa fotografia que eu próprio tirei. Apresento-a. Nada mais nada menos do que Eduardo Lourenço. Curiosíssima esta pista para explicação.

AMV multidimensional

O autor de «1968» (do livro, claro, não do ano, entenda-se, pois se fosse o autor do ano a discussão seria mais intensa) nasce num meio campestre, duplamente fechado: fechado o país sob a cor cinza da ditadura, na pobreza e na ignorância, fechada ainda mais a sua zona serrana e rural. Assim, contrariando algumas probabilidades, «liberta-se» através da sua vontade das suas capacidades, dos seus sonhos, da aquisição de conhecimentos (também com a leitura), da curiosidade intelectual e do talento (por que não dizê-lo, se é verdade?).

Interessa focar que se desloca entre vários mundos ou dimensões. Apesar disso, nunca renega ou sequer perde a sua ligação e o seu amor à terra mãe: Monchique, fonte inspiradora e profusamente ilustrada nos livros que tem publicado. Tenha ou não percepção disso, em grande medida Monchique deve já muito ao escritor. Creio que o seu tributo a Monchique deve deixar as suas gentes orgulhosas e (assim entendo) justifica uma homenagem séria por parte da sua terra (se não foi já atribuída). Mera opinião…

Como se pode então descortinar essa sua especificidade de vivência entre vários mundos? Concretamente entre o quê?

Neste caso, move-se entre uma pureza sensível bem aplicada à escrita e uma astúcia de raposa na captação das disfunções humanas, a qual, pelo rumo das suas palavras, pode confinar em algo desconcertante.

Entre o campo e a cidade, o meio rural e os meios cosmopolitas, entre a serra e o mar, entre Algarve e Algarve, entre este e o Alentejo, entre a tradição e a ruptura, mas afirmando sempre a justiça, o que é correcto num contexto de liberdade, designadamente de oportunidades.

Entre o pragmatismo, a dureza no cumprimento das missões profissionais, a frieza inerente ao mundo empresarial e o paradigmático combate ao «mal» e a (quase) fraqueza subjacente à sua vertente de generosidade. O autor habita um limbo entre a exigência e a condescendência, entre o reconhecimento do genuíno e do superficial.

Entre o fascínio seminal dos livros e o desencanto, entre o reconhecimento do belo e do considerado justo e a revolta e opressão.

Assim, também à custa de contrastes e antinomias se «fabrica» a riqueza crítica dos textos do autor, à sua imagem e semelhança, por vezes como um esplendor da austeridade ou uma austeridade que verdadeiramente se transcende e dá lugar a um estilo brilhante. Entre inclusão e anátema, entre participação e alheamento estratégicos.

Vemo-lo entre a solidão e a multidão. Entre o gamo que agilmente salta e escapa dos sombrios ambientes de decadente superficialidade, de grosseria ou de falsidade circunstancial e o gato que quer manter-se no muro ou na janela, parecendo não ver, mas captando atenta e sensivelmente os alvos nos momentos certos.

AMV e a solidão

A solidão aparente da escrita não é mais do que um recolhimento táctico para exorcizar ou depurar os resultados das relações com os outros, os que passaram e os que virão ler os resultados do seu trabalho entusiasmado. Mesmo quando grandes dúvidas assomam, leitores, destinatários, críticos, enfim, «os outros», estão omnipresentes. A solidão que pode permitir o desabrochar do génio através da escrita, sob certas circunstâncias, como acabamos de ver, é uma «falácia».

AMV – visão e captação

O mundo laboral obriga-o a ir ao encontro das multidões, e assim aproveita para «respirar» ambientes e posturas – intuitivamente, absorve-os e processa-os. Ao fazê-lo assume a sua postura plena de escritor, missão que Mário de Carvalho entende que «implica um quotidiano exercício de atenção, que vai captando em todo o lado – na rua, no emprego (supondo que o há), em casa, na vizinhança, em viagem – os gestos, os comportamentos, as falas e aqueles pormenores em que habitualmente não se atenta, mas são essenciais ao trabalho de composição que a escrita supõe».

Principalmente através das suas visões reais (também fictícias, oníricas) das coisas, das pessoas, do mundo – e em catarse de certa forma purificadora e libertadora –, bem-esboçadas na sua arte escrita, o autor acaba também por querer ser «visto». «Ver é ser visto», como diz Eduardo Lourenço.

Sobre as «asas» de AMV

Afirma Umberto Eco que «o sonho de voar habita o imaginário colectivo desde tempos imemoriais». Nós podemos voar ao sabor da escrita, o autor pode voar escrevendo e imaginando os resultados para os seus leitores, e os interpretadores como eu podem vislumbrar voos do autor, até mesmo metaforicamente sonhados, imaginados e comunicados. Vejo o António com asas, sentado no alto da sua serra, contemplando o mar, o horizonte. Vejo que conquistou esse lugar e essas asas com o valor acrescentado das suas criações. Está à beira de um abismo sobre o qual voa (planando amenamente) para voltar ao seu poiso, e esse abismo… não é mais do que o sucesso. Como acredito em «decisões» e em «circunstâncias», creio que foi da fusão de ambas que o António sulcou o mar da sua escrita e traçou a rota do seu estatuto.

As suas asas batem de forma contida, sem assumirem excessos de protagonismo nem arrogância… Aliás, segundo Tchékhov, «a arrogância é uma qualidade que fica bem aos perus». Mas o António engrandeceu-as, deu-lhes cor e vitalidade, e para isso beneficiou daquilo que é capaz e do modo frutuoso como absorveu as suas experiências.

O autor de «1968» é homem com carácter, e tendo-se obrigado (até por força das circunstâncias) a reconhecer e a enfrentar as perversidades humanas e as suas ciladas, transcreve-as com grande beleza para o papel. É um escritor premiado, com obra feita, uma obra já vasta e diversa e com talento. Não precisa de provar nada a ninguém, a não ser desafiar-se a si mesmo.

 

[Texto: Rodolfo Miguel Begonha]

04.07.17
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