Um fogo que tudo altera

Texto de Paulo Rosa, lido na apresentação em Monchique (sede da Cooperativa Agrícola) do livro Uma Noite com o Fogo, de António Manuel Venda (segunda edição, On y va), a 13 de Outubro de 2018

 

Vá lá a gente compreender o motivo que levou o António, escritor consagrado, premiado, que honra Monchique e que honra a literatura, a fazer-se apresentar por mim, que de literatura sei pouco mais que a designação. Talvez fosse para honrar-me a mim também e desse modo o entendo e o aceito com vaidade que tento dissimular. O António há mais de vinte anos que anda a ajudar a fazer a História de Monchique e o seu nome ficará por cá gravado na memória por muitas gerações e terá também o seu lugarzinho na História da Literatura Portuguesa. Foi Eça que disse que isto de escrever não é para todos, só para alguns – os outros terão outras compensações. O António não tem direito a compensações pois a Natura presenteou-o com o talento, que ele naturalmente acarinhou e desenvolveu, não só de manejar muito bem a linguagem escrita, como, acessoriamente, ter sido dotado de uma comichosa sensibilidade que lhe permite aceder a pormenores que passam ao lado do comum dos mortais, como se radiografasse seres e situações, autopsiando sempre a realidade à procura do pitoresco e de singularidades. Se tivesse sido médico, teria sido patologista ou legista; se tivesse ido para a Polícia, seria um chato do caraças.

A imaginação corre-lhe nas veias aos borbotões. Com mãos de cirurgião da palavra, ou de ourives produtor de filigrana, agarra em situações, episódios, minudências que mais ninguém vê, em que mais ninguém repara, e transforma-os em coisas lindas, importantes, caricatas, que nos fazem exclamar em pensamento: porque é que eu não vi isso também?

Está permanentemente a escarafunchar no real à procura de uma outra dimensão, de um outro mundo paralelo, que mesmo que não exista nos acaba por subir ao palato, por nos tocar e envolver e cativar por força da hipnotizante descrição do autor. Com artes de prestidigitação, concentra ocorrências e sensações num espaço de nada; ou então, desdobra a realidade (ou a fantasia), ampliando-a ao infinito: dêem-lhe dois grãos de areia roubados à Ribeira do Ambrósio e mandem-no escrever um romance com esses dois protagonistas; breve estará no prelo.

Os livros do António são de uma escrita sã, escorreita, divertida, que se lê com prazer e que nos faz sonhar, o mesmo prazer que temos ao ler o poema «Liberdade», de Fernando Pessoa, que jocosamente reza assim: «Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada/ O Sol doira/ Sem literatura/ O rio corre bem ou mal/  Sem edição original. (…)»

Dá prazer ler Fernando Pessoa mesmo quando simula falar mal da literatura, e dá prazer ler o António mesmo quando simula não acreditar nas efabulações que desenvolve.

O António tem uma eruptiva inteligência humorística, inteligência que infelizmente Howard  Gardner não identificou juntamente com as outras nove: a linguística, a lógico-matemática, a espacial, a corporal, a musical, a intrapessoal, a interpessoal, a existencial e a naturalista. Consiste esta aptidão, em meu modesto entender, essencialmente em detectar o aspecto incongruente, inusitado, absurdo, caricato, cómico, ridículo, de pessoas ou situações e sabê-lo transmitir aos outros através da ridicularização, do sarcasmo, da maledicência elegante, da ironia, da mordacidade, da fleuma…

É assim que muitas vezes, através de um relato de situação aparentemente inocente, inocula a sua bílis de forma cáustica, truculenta, quase virulenta.

Por exemplo: um certo presidente de câmara municipal comprar dois elevadores em vez de um porque embora só precisasse de um, até porque não havia espaço para instalar dois, já que o preço era em conta comprava-se logo dois, pois se o negócio de comprar um barato era bom, o negócio de comprar dois baratos seria melhor a dobrar; ou a cena do javali doido, doido porque sorria e até com sorriso enigmático, não bastava ser javali senão sorrir, não bastava sorrir senão sorrir enigmaticamente; ou quando chama diabo verdadeiro ao ministro das finanças, relegando a acção maléfica de Satanás para um humilhante plano secundário; ou quando descreve um chefe da protecção civil muito atarefado e activo, a dar ordens a toda a gente empunhando um copo de uísque; ou quando lembra um episódio de um certo padre do concelho cujo pai o exortava a estudar e ir para padre e não se limitar a ser cavador como ele, pai, pois com uma enxada na mão o mais longe que podia chegar era ao fim do canteiro; ou quando relata o mérito do burro que estava treinado para esperar o dono à porta da taberna e o transportar direitinho a casa depois de perdido de bêbado e quase inconsciente.

Mas voltando a mim e esquecendo um pouco o António, como poderia eu apresentar um escritor conhecido por todos nós e um livro que é segunda edição e que portanto é também conhecido por muitos de nós. Acresce que é muito comum, e portanto expectável, que o apresentador seja tão bom ou se esmere tanto no texto de apresentação que, não raras vezes, supera na tecelagem da palavra e na elaboração das ideias a obra do apresentado. Se pela mente fantasiosa do António perpassou por algum momento a ilusão de que eu teria a verve de suprir com o talento que não tenho ou com a dedicação que ele merece, a remota hipótese de polir um eventual lapso ou de ser uma mais-valia, é bom que retire o machinho do aguaceiro porque senão, alça-lhe o canídeo a perna no caminho.

Bem, mas ao contrário de outros livros do autor, este compõe-se de uma história real, ou pelo menos realista, onde os pormenores mais singulares ou até sórdidos não emanam do carrossel surrealista que é o seu cérebro fervilhante de fantasia mas da própria Natureza a decompor-se por acção de um fogo que tudo altera: a ordem, a vida, as cores, a forma, os volumes, a composição química, o modo de vida, a esperança e a ilusão.

Nesta obra, o narrador é o autor e as personagens são essencialmente elementos da Natureza não humana, como animais, árvores e o próprio fogo, talvez até como protagonista principal. É ele, fogo, que desenvolve o enredo, apresentando-se quase como humano, ou diabólico, coisa que, aliás, não é muito diferente. O tempo cronológico, que se reduz a apenas algumas horas, combina-se com o tempo subjectivo, psicológico, do autor, abarcando-lhe anos de vivência através da infiltração pela infância e pela juventude.

O vórtice energético da acção, pela sua densidade dramática, balizada nesse tempo exterior que vai do anoitecer à alvorada, faz lembrar, no cinema, o filme «Colisão», de Paul Haggis, na pintura os quadros do Salvador Dali e na poesia o «Cântico Negro», de José Régio, imortalizado na voz de João Villaret e que outro «artista» muito conhecido, o senhor Pinto da Costa, também declama de vez em quando.

A literatura do António não abdica da fauna, algumas vezes humanizada e explorando a vertente fabulística, outras vezes observada tal qual é e não sendo porém, por isso, mais afastada do comportamento humano no que se refere às sensações primárias como o medo, o instinto de sobrevivência, a astúcia, a coragem e a cobardia. Ou não fossemos todos descendentes de uma célula marítima que, era uma vez que era e que foi há muito muito tempo, decidiu, ou recebeu ordem para, desdobrar-se.

Assim, no universo geórgico-faunístico do autor, tomam lugar no palco silvestre: as ovelhas; um cão preto; os gigantes, porque os gigantes não são humanos; os luso-cucos, que brilham de noite; a águia que levanta voo de noite como se fosse um bufo, porque o fogo se lhe pegou às asas; o escalavardo, que sendo arisco embora, se refugiou na toca do Homem, na azenha, procurando protecção no forte do seu maior perseguidor; o bordalo, que se deixou pescar pelo balde de ataque ao fogo; as alclaras, como em Monchique se chama aos escorpiões; e, por fim, até um cágado, emprestado por uma história do Almada Negreiros.

Mas vejamos agora a vertente puramente utilitarista do livro. Porque conhecia e porque observou e porque reteve, deu conta no livro, o autor, de aspectos fundamentais na temática do fogo, como seja a actuação discutível das autoridades, a acção e a (des)coordenação dos corpos de bombeiros, a forma como o fogo progride nos vários tipos de floresta e até as árvores mais permeáveis à inflamação, ajudando a destruir mitos, e o caos que se gera quando o incêndio toma controlo dele próprio.

Não disse porque não sabia e há muita gente que não sabe (aliás, pouca gente conhece), a origem deste incêndio de 2003. A mente popular é fértil em imaginação, às vezes quase tão fértil como a própria mente, sempre em ebulição, do António. E a mente popular não se contenta com respostas simples e racionais, suportadas na evidência, num testemunho fiável ou na ciência. Quanto mais rebuscada, sinuosa, tortuosa inverosímil for a explicação de qualquer fenómeno, mais carinho acolhe no regaço da mente popular. Deste modo, inúmeros relatos surgiram sobre aqueles dias, ora sobre explosões, ora sobre artefactos encontrados, ora sobre um avião branco que andava a espalhar o fogo etc, etc. Uma tragédia daquelas não podia ser provocada por um fósforo ou por um isqueiro. Tinha de ser fogo posto e através de um plano diabólico de disseminação pela floresta de bombas, de lançamentos de paraquedas incendiários, de acção de terroristas… Uma tão grande tragédia tinha de ter uma origem digna. Mas não teve, pelo menos este incêndio. Teve uma origem simples e humilde – uma, aliás duas pontas de cigarro, atiradas negligentemente pela janela de um jipe a uma hora de altíssima temperatura e de humidade relativa do ar muito baixa. O Universo também teve uma origem humilde, bastou uma partícula infinitamente pequena explodir por acção de uma força desconhecida e criou o espaço infinitamente grande, o movimento, o tempo e tudo o mais que não sabemos e que o Homem nunca saberá por mais que a ciência o aproxime da luz da verdade.

Mas este livro é também uma história de afectos e de regresso às origens. Conduzindo do Alentejo a acelerar por causa do fogo que lhe estava a queimar a terra natal, o personagem/ autor dirige-se em primeiro lugar ao sítio onde apanhara landes com a avó e onde fora por ela acarinhado e a vira sofrer num dia da sua infância, impotente por não a poder ajudar. E ali, no berço da sua infância, as recordações do passado entrelaçam-se com as sensações do presente, num novelo intricado, onde o menino/ homem se debate com o homem/ menino e a imaginação se confunde com a realidade.

A poetisa algarvia Teresa Rita Lopes, que deu a um dos seus livros de poesia exactamente o título Afectos, mostra aí a importância das raízes e a necessidade de voltar de Paris ou de Lisboa a Faro, onde nasceu, e muito especificamente até à casa dos avós de Cacela e à casa dos avós de Alcoutim, certamente para se reencontrar e recarregar com a libação da saudade baterias de emoção para a esperança. Foi por isso que o menino António se dirigiu direitinho à casa dos avós. Dizia Friedrich Nietzsche que todo o homem digno desse nome tem dentro de si uma criança que quer brincar. Confiamos que o António nunca deixe morrer a criança traquina que há aos saltos dentro de si, a sonhar, sempre a sonhar, para que nós possamos também continuar a sonhar e com o sonho, que comanda a vida, como disse Gedeão, acarinharmos a criança que também há dentro de cada um de nós.

[Texto: Paulo Rosa]