Toda a literatura é uma homenagem à literatura

Texto de José do Carmo Francisco, no seu blogue Mesa dos Extravagantes (https://mesaextravagantes.blogspot.com), sobre o livro Só o meu computador me compreende, de Fernando Venâncio (ed. On y va)

 

Fernando Venâncio (n. 1944) regressa nestes «contos breves» ao seu livro anterior Beijo técnico» – páginas abertas ao absurdo da vida. Um exemplo na página 49 deste livro: Bons conselhos: «Ele dizia-me. Toma tudo à letra. Mas não tomes tudo a sério.» Outro exemplo, mas este da vida enquanto realidade: O presidente dos Estados Unidos viu o seu partido perder a maioria do Senado mas chamou no Twitter «dia glorioso» ao seu dia de derrota. É possível que alguém acredite no absurdo e na mentira. Ora o absurdo está mais perto de nós do que parece. Veja-se o texto da página 81: «Tinha o romance e só faltava o título. O programa leu o romance em seis segundos, talvez menos, e cuspiu, hierarquizados, oito títulos que garantiam fortunas. Escolheu o quinto. Gostou dele. A última viúva de Josino Fontes. Catita ao máximo. Um alexandrino perfeito. Na história não compareciam nem Fontes nem um Josino, muito menos viúvas dele. Mas também a peça de Ionesco não tinha cantora careca nenhuma e foi o êxito que se sabe.» Uma história talvez passada no país que Stefan Zweig considerou «o país do futuro» está na página 80: «Seis meses depois do golpe de estado, o ditador mudou de ideias. Arranjou um jornal, uma rádio, uma televisão, um portal na Internet e lançou-se a pregar a justiça social. Foi eleito presidente por tão extrema percentagem que a ditadura voltou. Democraticamente. E foi democraticamente que de novo houve um ditador. Sempre haviam dito que aquele era um país inviável.»

Num tempo dominado pelas redes sociais («– Pai, o que são redes sociais?/ – São redes, filha, em que a gente cai./ – Mas sociais porquê?/ – Porque caímos todos juntos.»), há quem perante a exclusão não compreenda nem aceite: « – Diz então o meu amigo que se espanta de quem não tem conta no Twitter ou no Instagram./ – Exacto, Faz-me confusão. Dá-me pena.»  O esplendor do absurdo pode estar na página 97: «Desmontaram a Ponte sobre o Tejo. A tal. Essa mesma. Parafuso a parafuso, porca a porca, anilha a anilha, tudo foi habilmente retirado, numerado, encaixotado, armazenado.» O humor anda paredes meias com o absurdo. Vejamos o texto da página 30: «Quando lhe perguntavam o que fazia, informava que era linguista. Pensavam imediatamente e às vezes diziam que certamente falava um ror de línguas. Respondia que sim, mas que o verdadeiro linguista não precisava de conhecer mais do que uma.»

Na página 30, um conto sobre a morte: «Quando o vi já sentado no metro, dei-me conta de que reparara nele, moço novo, a entrar, naquela estação do hospital. No rosto trazia toda a tristeza do Mundo. Foi nos anos oitenta, quando a sida era a morte já rondando.» Na página 31, um conto sobre a vida: «Ele sorria. Voltava a olhar o telemóvel e sorria. Estava-se no metro, cheio, mas só eu o observava. Ele continuava a sorrir. Era quase ofensivo, aquele sorriso de descarada felicidade.» Fernando Venâncio cita o título de Camilo Castelo Branco (Onde está a felicidade?), porque toda a literatura é uma homenagem à literatura.

[Texto: José do Carmo Francisco]