Um livro escrito com mestria

Texto de José Carlos Madureira, publicado a 15.02.19 na sua página do «Facebook», sobre o livro Hoje é Tudo Falso e outras crónicas, de António Souto (ed. On y va)

16.02.19

Foi com enorme satisfação que pude assistir ao lançamento de mais um livro de António Souto, amigo e colega de profissão no antigo Liceu Camões, hoje e há muito designado «escola secundária». Aconteceu ontem, na sua lindíssima biblioteca, num fim de tarde de Inverno a prenunciar a Primavera, que não tarda. Para além do autor, que assim nos presenteou com o mais recente livro – intitulado «Hoje é Tudo Falso e outras crónicas» –, falaram o professor João Jaime Pires, director da escola, António Manuel Venda, editor e responsável pela selecção das crónicas que compõem o livro, e Pedro Mexia, que nos brindou com uma apreciação crítica que fez jus ao seu reconhecido talento como autor e crítico literário.

Mas porque se trata de falar do autor do livro então apresentado, António Souto, e porque só há minutos terminei a sua leitura integral – iniciada ainda ontem depois da sessão, na carruagem do metro que me levou de regresso a casa –, apenas digo que gostei imenso de o ter lido.

Para quem está habituado à companhia dos livros (sejam de que género for) e não consegue passar sem o seu manuseamento e leitura diários, não me posso quedar numa apreciação tão sumária.

Trata-se de um livro de crónicas, como já referi. E apesar de ontem se ter dito que não é tarefa fácil encerrar o género numa única definição, e não apenas por falta de consenso sobre como definir «crónica», arrisco ainda assim dizer que é uma curta narrativa que paira entre a literatura e o jornalismo, que é palavra derivada do termo grego krónos, esse deus que personifica o tempo, e que, no dizer de Ricardo Reis, é um «deus atroz/ que os próprios filhos/ devora sempre», que é uma curta narrativa, dizia, de acontecimentos ocorridos num determinado período.

É certo que algumas das crónicas que perfazem o livro remetem para um passado de que o autor manifesta alguma nostalgia, esse passado de menino e moço que a sua memória convoca para um festim onde se presentificam personagens, objectos ou situações desnudadas numa simplicidade de quem acabou agora mesmo de chegar ao mundo; e que, decorridas décadas, involuntariamente assaltam o espírito do autor como um ladrão justiceiro e bom. É também por isso que gosto deste livro. Mas não é só. É sobretudo porque foi escrito com a mestria de quem domina a arte de juntar palavras com conta peso e medida. Igualmente por isso, António Souto, mereces a minha admiração e, por que não dizê-lo, uma certa dose de inveja salutar. Invejo-te porque gostava de escrever como tão bem escreves e desejo que continues a fazê-lo para que te continue a invejar.

Um bom escritor – mais uma definição que aqui arrisco – deve fazer adequado uso de técnicas ou recursos estilísticos que causem vivo efeito literário no leitor. Uma das técnicas por que tenho mais apreço é o uso do discurso indirecto livre, pelo dinamismo e pelo ritmo que empresta à prosa, transfigurando-a numa poética da narrativa, como se pode exemplificar citando um excerto da crónica «Moura encantada»:

«No dia seguinte, pela hora de almoço, numa pequena pastelaria do cimo de Beja, acerca-se de nós uma catraia, de uns cinco anos, e fita-nos. Como é que te chamas? Diana. Ah, és muito linda, toda morenaça. E tens um nome muito giro, sabias, um nome de deusa. Nada. Silêncio. De supetão, alheia a divindades e floreios. O meu pai chega daqui a dois dias. Ai vem, e vem de onde, da França, da Suíça… Não, o meu pai está preso. E aos saltinhos, tão insondável como viera, afastou-se rua fora e deixou-nos sumidos num afogamento enorme. A senhora por detrás do balcão encolheu um sorriso, que era normal, o pai da menina até já vinha passar os fins de semana a casa, que ela andava muito contente por o pai vir agora de vez, isto se não voltar a meter-se de novo em sarilhos, coisa de drogas, e que a menina contava a toda a gente, não fizesse caso. Mas fizemos. Fizemos porque há perguntas que se não devem fazer quando se não podem adivinhar respostas, quando se não pode decifrar a inocência que brota do fundo dos olhos de uma criança. Fizemos caso, também, porque a alegria que juncou o ar naquele instante contrastou com a dolência da véspera, mas isso foi o menos importante. O que valeu mesmo a pena foi termos trazido connosco, no regresso a casa, a candura confiante de uma deidade.»

O título, bem escolhido, encerra um paradoxo, como bem assinalou Pedro Mexia. Se nos lembrarmos do conhecido paradoxo de Epiménides, o mentiroso, o tal que mentindo era vero, e se era verdade o que dizia, logo mentia, mutatis mutandi percebemos que afirmar «hoje é tudo falso» conduz-nos a uma contradição inelutável e sem saída: pois se é verdade que «hoje é tudo falso», então o próprio dito é falso, por não poder ser verdade que hoje tudo seja falso; mas se for falso que «hoje é tudo falso», então a frase é verdadeira, o que nos leva de novo à negação de que hoje seja tudo falso…

E é isto que tenho a dizer do meu fim de tarde de ontem. Muito obrigado, António! Até ao próximo livro, que já aguardo com paciência, por perfeitamente saber que a arte da escrita requer o vagar necessário para a parir.

 [Texto: José Carlos Madureira]