«Da modesta esteva, brotou a esperança…»

Texto de João Filipe Bugalho, escrito de memória a partir da apresentação em Santarém, na ExpoCaça, a 4 de Maio de 2019, do livro O Perfume da Esteva, de Paulo Rosa (ed. On y va)

 

Em primeiro lugar, é da maior justiça agradecer ao editor, António Manuel Venda, por ter publicado este tão precioso livro.

Melhor ficaria, provavelmente, se tivessem escolhido artista mais capaz para fazer a ilustração da capa, mas confesso que fiquei grato por me terem permitido associar assim a esta edição, cuja repetida leitura me tem proporcionado profundo prazer e emoção.

Depois, agradecer ao Paulo Rosa por se ter decidido, finalmente, a trazer à luz estes tão bons, tão ricos, tão interessantes poemas. Para além da poesia, são textos extraordinários no conteúdo, na cultura que traduzem, nas memórias que suscitam, na tradução das inebriantes revelações que o campo nos transmite, dos frémitos que sentimos no levante de cada peça de caça, no perfume do ládano, das flores silvestres e do pasto acabado de segar, nas luzes da madrugada, no cair do sol poente e tantas outras miríades de sentimentos e episódios que os caçadores descobrem no campo e que quem não os vislumbra diz, tantas vezes, serem mentiras. Algumas serão, ou pelo menos verdades exacerbadas pelo entusiasmo e pela paixão.

 

Mas comecemos então pela beleza. Logo a abrir, para dar levante ao primeiro poema, sobre o dia da abertura:

A noite é breve/ É a noite mãe da melhor manhã.

Que forma mais inspirada poderia haver para anunciar a noite dormida à pressa, entreacordada, suspirando a madrugada, mais vivida ou sonhada na antecipação das emoções que irão saltar naquela antemanhã que se deseja curta para que, sofregamente, se possam beber revisitadas experiências, surpresas imaginárias de caçadas, inesperados instantes de mistura com saborosas aventuras de outrora, nesse dia em que:

Corre a manhã os cães o chumbo voa/ Descansa pouco a pouco o vício, consolado/ E serena mansamente a vida que povoa/ O campo que acordara estremunhado.

Até que é descrita a hora da primeira pausa, o saboreio do «taco» da merenda:

E é depois, então/ Na abertura do farnel gordo, partilhado em grupo/ No aconchego sombreado de uma azinheira/ Que rolam histórias, lamentos, justificações/ Gargalhadas picardias e acusações/ Temperadas com chouriço torresmos farinheira/ E dissolve o tinto, as mágoas e as frustrações.

 

Chegado aqui, é curioso notar que sendo o título do livro O Perfume da Esteva, Paulo Rosa não dedique à planta um só poema. Mas não a esquece.

Conhecedor da literatura portuguesa, preferiu escolher, em lugar da sua, a palavra de Manuel Alegre, outro companheiro de idênticas emoções, de similares apetites, caçador e poeta consagrado de quem cita esta quadra, logo de entrada:

 Floriu efémera a flor da esteva/ Já seu esplendor é quase um fenecer/ Branca e breve a brisa a leva/ E dela fica um verso por escrever.

 

Também eu partilho com ambos o fascínio pela esteva. Não me chegando, porém, o talento para me exprimir em verso, aqui os acompanho com esta prosa que escrevi, vão lá mais de trinta anos:

 

A ESTEVA
Ensinaram-me, quando comecei a estudar ecologia, que a esteva, ou xara, como é conhecida em algumas regiões próximas da fronteira com a Espanha, era um indicativo da chegada à fase final da degradação de muitos dos nossos biótopos.
Com efeito, quando os sulcos sucessivos do arado, em busca da cama para o trigo, acabaram por deixar à superfície pouco mais do que a rocha-mãe, a qual ficou exposta à impiedosa soalheira ou aos invernosos frios arrancados do coração da Meseta, que ser vivo há capaz de resistir a tais rigores?
A esteva.
Que, a pouco e pouco, perseverante, com uma vontade inquebrável, nascendo às vezes nos intervalos das rochas, rasgando chão por entre as fendas dos xistos, consegue sobreviver. Depois instalar-se e, finalmente, cobrir encostas e encostas outrora deixadas nuas pelo abuso dos homens. E o aroma vigoroso do seu ládano passa a encher de Verão as noites quentes. E as magras folhas, cobertas de goma, resistindo ao calor do Sol, criam, a pouco e pouco, sombra.
Onde nasce tojo, rosmaninho, pilriteiro, aqui e ali catapereiro, silvados e um conjunto sucessivo de arbustos onde os pássaros fazem ninho. Onde o coelho se furta das vistas de uma águia. Onde a perdiz refugia os perdigotos que escapam assim de morrer desidratados.
Onde o javali encontra refúgio e comida revolvendo o solo já formado em torno das raízes. Rico em insectos e larvas que a galinhola, escapada aos frios setentrionais, também não desconhece.
Quando o homem recomeça, um dia, a arrancar a esteva – e foi com ela que durante séculos aqueceu o forno do pão –, dá-se conta de que por entre aquele matagal, aparentemente monótono, vêm já irrompendo azinheiras e sobreiros, nascidos das landes e bolotas deixadas por algum gaio, ou pombo, ou outro qualquer dos recursos maravilhosos de que a natureza deitou mão.
Voltou o montado!
Voltaram os densos matos mediterrânicos e toda a riqueza faunística que os acompanha. E eis que então, com o despontar da Primavera, com o renascer do campo, aparece a serra coberta de um enorme manto branco. Flores de pétalas imaculadas umas, outras marcadas por um pequeno coração vermelho-sangue.
Flores que atraem as abelhas, mas que também ajudam a cerva a dar mais leite à cria.
Flores que gerarão as cápsulas que irão ajudar a fazer do cervato o veado de amanhã. O senhor da serra e das várzeas, cujo berro da brama encherá os vales no Setembro próximo!
Da esteva, da modesta e pobre esteva, brotou toda a esperança…

 

Mas voltemos ao livro.

O Paulo Rosa dedicou um poema a todas as espécies que caçou. Mas não se resumiu a fazê-lo com destreza, com habilidade literária, com recurso ao melhor português, com a pintura tão expressiva de fascinantes paisagens. Caracterizou também, sinteticamente, o mais importante de cada espécie, acrescentou, para cada uma delas pinceladas certeiras sobre os seus hábitos, sobre as suas particularidades biológicas, ínfimos detalhes que com grande exactidão definem o essencial do meio onde habitam ou algo do mais marcante dos seus modos de viver.

Tiros precisos, um de cada vez, sem emenda…

Não iremos aqui citá-los todos, apenas pretendemos apontar uns quantos à curiosidade do leitor menos atento.

Vejamos alguns exemplos.

 

Sobre a lebre, o poema que termina:

Deu-lhe a Natura como bênção/ A prolífera singularidade/ Do bónus da multifetação.

Sim, é verdade que a fêmea tem a particularidade de poder guardar do macho os espermatozoides, que são acumulados no útero para os ir usando quando necessitar de fertilizar novo óvulo, sem necessitar de uma outra cobrição.

 

Sobre o local que as perdizes escolhem à tardinha, em geral num cabeço, para passar a noite:

E o canto lá no cimo da colina/ Sorrindo a nascente, que é dormida/ Na tarde que se esvai…

 

Ou sobre o meio onde podemos encontrar a codorniz:

Na borda do riacho onde a erva teima/ Na cultura verde do milho, do pimento/ No painço nascido sorrateiro/ E até no restolho seco e deprimente/ Faz dura e linda a vida ao perdigueiro.

 

Sobre o modo como voam os patos:

No seu roteiro migratório altivolante/ Escreve em folha de céu azul a letra V/ E seduz o olhar na passagem rutilante…

 

Ou sobre a rôla, cujas duas crias parecem mal seguras no ninho rudimentar:

Ou do ninho trôpego onde os gémeos se equilibram/ (O mais aluído berço que existe:/ Paus cruzados sem talento nem cautela)

 

Da galinhola, que define logo ao primeiro golpe:

No pinhal cintila o branco espelho/ Que a dama com olhos de veludo/ E pena de pintor a tiracolo…

 

Ou esta forma tão poética como picaresca de descrever a chegada dos tordos, vindos do Norte:

Segmentos de recta no céu, separados a pios/ São promessa de guerra aos caracóis,/ E que se acautelem as daroeiras/ medronheiros, murtinheiras/ E olivais/ Formigas e outros pequenos animais…

 

Sim, a graça é também uma característica do espírito são e humorístico do nosso autor, cujo cume atinge a plenitude no poema ao «Ti Torrinha».

Tinha o senhor Torrinha o feitio/ (E qualquer um tem direito a ter o seu)/ De poupar, de poupar como um judeu/ Mas judeu tão poupado nunca se viu
 Só que alma do avaro, ao arrepio/ Da pulsão de juntar o resto ao seu/ No vício fútil da caça adoeceu/ Embora voltasse de cinto vazio
 E os vizinhos a sorrir de malvadez/ Inquiriam-no à chegada, por causa/ De nunca pendurar pelo nem asa:
  Que matou, senhor Torrinha desta vez?/  Não cacei nada e que mal é que fez?/  Trago o chumbinho todo para casa.

 

Mas além de humorista é psicólogo. No poema «Os sons da espera» – longo como estas são revela enormes qualidades de análise introspectiva bem como o talento para descrever quanto em nós influi a espera e a passagem do tempo, como observador atento das variações induzidas no nosso íntimo pelos sons da noite, pelos reflexos do luar, por um estalido inesperado ou pela vinda à superfície de pensamentos dissimulados que o aguardo faz ressurgir dos mais profundos esconderijos da nossa alma.

 

Estranho seria que faltasse o companheiro fiel de cada jornada, e assim é cantado o perdigueiro português:

Não me busquem a lonjura de venta do primo inglês/ Ou do germânico a suspensão e longarinas de aço/ Nem a delicadeza afável do bretão/ Muito menos a certeza de rasto dos peugueiros/ Mas tenho de tudo um pouco e quanto baste/ Veículo todo-o-terreno e anfíbio até/ Clínico geral nas aventuras do campo/ Especialista na arte do ecletismo/ E sou amigo, comilão, desenrascado e folgazão/ Filho do fundo dos tempos e da veia/ De tantos mestres pais/ Domingos Barroso, Fausto e Rodrigues/ Marques, Lança e tantos mais.

 

De grande beleza é também a referência à Pitucha, fiel companheira de outrora, caçando agora já nas planícies da eternidade:

Levar-te-ei comigo a passear,/ (…)/ De quando em vez virás a mim cobrar o afago/ E sentirei na mão o bafo quente/ A humidade viscosa da língua rosa/ E renovaremos o pacto da amizade

 

Muitos outros poderíamos citar, mas vai já longa a exposição. Porém, nestes tempos em que a opinião pública urbana dominante tanta crítica faz ao caçador, espécie a que atiram impiedosamente e ameaçam de extinção, minoria que não está entre aquelas que agora é moda a sociedade defender, não resisto ainda a citar o autor que sintetiza de forma bem admirável «A Sina do Caçador»:

 Não é a volúpia do sangue que nos impele/ Nem um sadismo doentio que nos amarra/ À libação do culto aceso a Diana./ É um impulso irrecusável do instinto/ Um comando imperativo de corpo e alma/ De micélio imperceptível e ancestral/ Tal genoma inscrito a fogo no ADN.

 

Para não se sentir só, Paulo Rosa busca a companhia de outro escritor, portador também desta paixão, e cita o inesquecível Torga:

Aos domingos continuava a caçar (…) O homem primitivo que nunca se resignara dentro de mim só vinha à tona em toda a sua plenitude de cartucheira à cinta.

 

Enfim, dos quarenta e dois poemas que perfazem este riquíssimo livrinho, citei apenas umas estrofes para que o leitor se entusiasme, se perca nos meandros das infindas planícies poéticas que o Paulo Rosa nos entreabre, e verá que a cada leitura, a cada volta da linha, a cada espera, encontrará insistentemente ao rastrear, sempre que recomece, um novo detalhe, um novo pormenor. De cada frase em que tropece lhe saltará outra ideia, outra imagem, outra alegoria, ávida de ser apanhada nos laços da descoberta, enriquecida em nova fantasia.

Para além das espécies, das aventuras e histórias venatórias, é um sem fim de temas que vão das divindades mitológicas ao pisco, à víbora, à águia-de-Bonelli, ao bufo-real, ao lince, até aos escritores portugueses, a Ortega y Gassett, a tantos outros assuntos que a cultura permite associar às tarefas de Artemisa.

 

A exposição vai longa… Urge terminar.

Porém, antes ainda, uma última citação que o editor também destacou para a contracapa do livro e que dá início ao poema «Liberdade», esta que é apanágio dos verdadeiros caçadores:

Toma à madrugada o cão e a mochila/ E roda a chave das portas da cidade/ Solta as amarras ao ginete/ Da tua imaginação/ E galopa no verde/ Prado da liberdade (…)

 

Liberdade! O grande alvo, a mais incessante busca dos mais nobres corações dos seres humanos!

 

Finalmente, diz o autor numa nota a seu respeito:

(…) Fiz estas coisas para me libertar de as ter cá dentro, a escarafunchar. A publicação é apenas um tiro saído pela culatra: um acidente. (…)

 

Caro Paulo Rosa,

Oxalá, para alegria e júbilo dos seus amigos, dos seus companheiros de caça ou mesmo para quem não o conheça senão através da escrita, a vida lhe permita ter muitos mais acidentes destes, muitos destes tiros saídos pela culatra, em verso ou em prosa, como melhor lhe der a pontaria, sempre com a persistência indomável como caça, sempre com a grandeza de alma que é a marca do seu ser, para que os seus escritos se juntem aos dos famosos criadores que, como refere a jeito de remate, se encontraram:

Naquele cantinho do Céu cheirando a mato/ Que Deus a Diana reservou e a seus devotos…

 

Bem-haja!

 [Texto: João Filipe Bugalho]