O fascínio da crónica

Texto de José do Carmo Francisco sobre o livro Hoje é Tudo Falso e outras crónicas (ed. On y va), de António Souto; publicado na Gazeta das Caldas a 21 de Junho de 2019 (e disponibilizado também no blogue Mesa dos Extravagantes)

 

Hoje é Tudo Falso e outras crónicas, o mais recente livro de António Souto (n.1961), inclui 31 crónicas, e o título é retirado da página 13: «Os currais ruíram e já não há eira nem quem chegue lume à caruma, nem adega, nem mesa grande, nem quem se sente nela. Hoje é tudo falso, tudo tão distante…»

Como género literário, a crónica, sendo um híbrido, concorre com o poema, o conto, a notícia, a reflexão, o apontamento. A citação inicial de Eça de Queirós em 1867 dá uma ideia do fascínio da crónica: «A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto dos seus amigos.»

Na página 15 o autor refere o seu gosto pela música: «Tive há muitos anos um gira-discos que comprei em segunda mão. Eu não era um especialista em música nem sequer tinha um género musical de eleição.» Na página 21 outro registo, o do sofrimento: «Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.»

Há também um lugar para a memória e para o passado. Primeiro a memória: «A seguir ao relógio que o meu avô me ofereceu no dia do meu exame da quarta classe, o camião de ferro amarelo foi talvez a minha maior relíquia da infância.» Depois o passado: «Os rebuçados de hoje já não sabem a nada nem têm crianças que os procurem ou que os saibam descascar como segredos.»

Apenas mais dois exemplos no registo desta cartografia pessoal do autor. Por um lado, o Natal: «Começo a ficar cansado de ouvir e ver tanto natal quando chega a quadra natalícia, como se não houvesse mais nada para ver e ouvir.» Ou o Mundo: «Até uma certa idade pensamos que o Mundo é todo nosso, que somos o centro dele, que tudo quanto nos rodeia parece estar a mais, refugo.»

Afinal o mesmo Mundo onde o Padre António Vieira falava dos peixes grandes que comem os pequenos em vez de serem os pequenos a comer os grandes, tal como já Almeida Garrett referiu os 200 pobres que são precisos para fazer um rico.

[Texto: José do Carmo Francisco]