«Gostava de conhecer um descendente da bruxa da Corte da Pomba.»

Texto de José Franco Costa Duarte, de suporte à apresentação no Monte da Lameira (Alferce, no concelho de Monchique), a 29 de Junho de 2019, do livro Os Abençoados Fiéis do Senhor São Romão, de António Manuel Venda (ed. On y va)

 

Quando no final de tarde de um dos primeiros dias do passado mês de Maio o telefone tocou em minha casa, apercebi-me, pela forma de atendimento da chamada, que a mesma me era dirigida. Contudo, estava longe de adivinhar o imbróglio que sobre mim desabava.

A informação que ouvi, de que ia ter lugar o lançamento de um livro reeditado pelo autor, informação esta seguida do pedido da minha colaboração para esse acto, deixou-me atónito, sem conseguir atinar com o que deveria responder.

Lutando contra a surpresa, tinha, por um lado, a noção de que a intrínseca falta de conhecimentos literários não me permitiria que devesse aceder à solicitação.

Por outro lado, pesava o facto de não ter mantido, ao longo de anos, contactos pessoais com o autor, do qual conhecia superficialmente a personalidade.

Em oposição, colocava-se a situação de ter informação sobre um conjunto amplo das suas publicações, que julgo possuir na quase totalidade, e um aspecto preponderante, consequência de uma familiaridade mantida quer com os antepassados, quer com os elementos mais recentes da sua linha materna.

Subsistia o dilema:

Sim? Ou Não?

Ainda meio estonteado, veio-me à mente a noção de que, se a tarefa não conseguisse o encaminhamento desejável, a responsabilidade não me caberia na totalidade, na medida em que, estando tranquilamente em casa, alguém me veio arrastar para um provável insucesso. Isto constituiu um alívio que diminuiria, de forma considerável, a preocupação dominante.

Foi esta a escapatória que me levou a dar uma resposta positiva.

Eis, pois, a razão de aqui estar hoje no Monte da Lameira.

Ao António Manuel Venda caberá responder por quanto de menos bom se passar.

A família do lado materno do autor era do Alferce, onde viviam os bisavós, e no Alto moravam os tios bisavós, um casal sem filhos, que tinha com eles um sobrinho, tio avô do autor.

A casa destes senhores era a mais próxima da habitação de meus pais, daí os contactos serem permanentes e o resultado ser a amizade e a convivência.

A propósito, conto uma história que se passava comigo, na meninice dos sete/ doze anos, e que tenho revelado em eventuais conversas com amigos íntimos.

Como algumas das pessoas que aqui estão sabem, especialmente os menos jovens, naquele tempo a alimentação diária era composta por quatro refeições. A saber: O «mata-bicho», no início do dia de trabalho; o almoço, cerca das 10/ 11 horas; o jantar, às 2/ 3 da tarde; e a ceia, ao início da noite.

O almoço era frequentemente composto por papas de milho (na altura, milho branco).

Acontecia que na casa de meus pais, havia um compartimento com janel, de onde se avistava toda a extensão da fachada principal da casa do casal, e, consequentemente, uma janela nela existente, que era a da cozinha.

No parapeito da dita janela era colocado o tacho das papas para que estas arrefecessem.

Havia alguém que fazia sucessivas espreitadelas até verificar o desaparecimento do tacho. Então era vê-lo sair apressadamente para casa do «Ti Zé António» e da «Ti Mari José», a quem não restava outra alternativa se não a de colocar mais uma colher na mesa, para a refeição das quatro pessoas.

Está identificado o comensal (indesejável).

Conheci a vida dos avós e dos tios avós do autor, desde o desaparecimento de um deles, até à constituição de família, por parte dos outros.

A mãe do autor, enquanto adolescente, passava algumas temporadas, no Verão, com os respectivos avós o que aconteceu durante vários anos até que, mercê da alteração das condições, se mudou para aonde actualmente vive.

Após esta mudança, os contactos passaram a ser menos frequentes, perdendo-se assim a relação de proximidade, embora eu mantivesse o interesse pela evolução da família, inclusive do seu aumento.

Teve então lugar um longo período em relação no qual vagamente tinha conhecimento da vida do casal e dos seus descendentes.

Passados alguns anos, os encontros relativamente frequentes com o irmão Zé faziam-me saber que o António estava a «estudar fora».

O contacto com o autor reiniciou-se, não de forma pessoal, mas por consequência das suas publicações.

Desde sempre mantive o interesse na aquisição das obras, de cuja existência dava conta que fossem sobre o concelho de Monchique, as suas gentes, os seus encanto e as suas lendas e histórias, ou particularmente as obras cujos autores tivessem origem no concelho.

Assim, comprei o primeiro livro publicado pelo António Manuel, o mesmo acontecendo com o segundo, com o terceiro e por aí adiante, com quase todos os outros, até aos mais recentes.

A forma de escrever, os temas abordados, alguns deles por mais inverosímeis que sejam, as descrições da toponímia dos diversos sítios, que muito me agradam por transmitir às gerações vindouras o conhecimento de designações que de outra forma corriam o risco de desaparecer, quando o mesmo acontecesse aos mais idosos, levaram-me a ser um seu seguidor atento.

O apego com que trata tudo quanto esteja relacionado com a terra onde teve as suas origens e onde passou a sua meninice coincidem, de certo modo, com a minha própria vivência, o que me torna seu apoiante.

Poder-se-á definir «escritor», de forma simplista e genérica, dizendo que se trata de uma personalidade com aptidão e talento para transmitir no papel ideias e opiniões e, também, o fruto da sua própria imaginação, fazendo-o com arte, de modo a interessar e entusiasmar o leitor em relação ao desenvolvimento dos acontecimentos sequentes, mantendo a imprevisibilidade do resultado final, o qual este anseia por conhecer.

A obra do autor, composta por cerca de dezena e meia de publicações, algumas com várias edições, como esta de hoje, Os Abençoados Fiéis do senhor São Romão, que vai na segunda, são a melhor confirmação da sua qualidade de escritor, atestada pelo facto de terem tido a aceitação dos leitores, quer pela forma simples de exposição, criando uma sequência de leitura fluente, quer pelos conteúdos das histórias engendradas, tornando inquestionável o seu mérito, sobre o qual se me afigura não ter capacidades suficientes para tecer mais comentários valorativos.

O tratamento e a atenção que dedica aos seus familiares mais próximos, nomeadamente os avós, os pais e o irmão, e as referências que faz às deslocações que, em criança e na juventude, fazia aos prédios rústicos, acompanhando os trabalhos que ali se realizavam, são, do meu ponto de vista, muito marcantes, por ser um posicionamento que vai escasseando nos tempos que correm.

Esta atitude encontra-se expressa em várias descrições, especialmente no romance Uma Noite Com o Fogo.

Durante décadas, temos vindo a assistir ao êxodo das populações autóctones, em busca, compreensível, de melhores condições de vida, produzindo na maior parte dos casos o afastamento em relação às origens, quando muito voltando esporadicamente para rever familiares, vizinhos e amigos.

Esta, julgo poder afirmar, não é a atitude do autor, que continua indelevelmente ligado ao território e às suas gentes, embora tenha de recorrer à vivência noutras latitudes, por necessidades óbvias.

Mais uma vez defendo esta forma de estar e manifesto o meu caloroso aplauso à acção desenvolvida pelo António.

O título desta obra menciona o orago da paróquia de Alferce – São Romão –, e o início do texto é dedicado à citação do acontecimento de maior vulto, se não o único, que tinha lugar na freguesia, à data em que decorria a história – 1911 –, ou seja, a Festa de São Romão.

Os relatos efectuados afiguram-se-me absolutamente reais, quando confrontados com aqueles de que me recordo e que conheci quarenta e tal anos mais tarde, ao chegar ao princípio da minha adolescência.

Tanto os aspectos de natureza religiosa como da parte profana, que tiveram origem em tempos imemoriais, faziam convergir para a localidade centenas de pessoas, oriundas do espaço da freguesia e das áreas com esta confinantes.

As deslocações eram feitas a pé ou com recurso aos únicos meios de transporte possíveis, os animais de trabalho que cada um possuía.

O ajuntamento tinha em vista a satisfação das necessidades de natureza espiritual, mas também uma parte fortemente social, que consistia no convívio entre familiares, amigos ou simplesmente conhecidos, que assim confraternizavam pelo menos uma vez por ano.

Com a possibilidade de utilização de transportes rodoviários, passaram a ser maiores as comodidades e surgiram os veículos motorizados, os próprios e os colectivos, fazendo estes deslocações extraordinárias, que tinham lugar pela noite fora.

Todavia, a evolução favorável das condições de vida não conduziu, necessariamente, ao aumento de participantes nas festividades.

As razões do facto têm justificação de diversa ordem, desde a saída da população à menor possibilidade dos residentes noutras localidades poderem abandonar as respectivas obrigações.

Terá contribuído também a eliminação de algumas atracções, como a participação da banda filarmónica e a exibição do fogo-de-artifício.

Nos tempos mais recentes, a afluência de participantes é reduzida, direi mesmo inferior à que se observa noutros eventos que têm lugar algumas vezes por ano.

Porque o declínio da ocorrência sociocultural mais antiga do Alferce é um facto, louvo a atitude do autor ao relatá-la nas páginas do seu livro, para que possa passar à posteridade.

Tanto nesta obra como em todas as outras, a ligação à ruralidade da região onde se desenvolvem os episódios é marcante, seja pelo linguajar, seja mesmo pela rudeza das expressões (reais), seja pelos termos empregues, o que revela quão profundo é o conhecimento do autor sobre o comportamento das populações, particularmente por corresponderem ao de gerações bastante anteriores à sua.

É, pois, surpreendente, revelando um enorme cuidado em ser genuíno.

Embora tenha considerado a leitura como fácil, alguma coisa me suscita dúvidas, que não consegui eliminar, provavelmente por culpa minha e por ter mais curiosidade do que aquela que me seria permitida.

Trata-se do facto de, em relação a cada personagem citada na obra, o autor procurar sempre adaptá-la a histórias inerentes a uma eventual situação ocorrida na vida real, que pensei ser também do meu conhecimento.

Nunca o consegui, o que me causou alguma frustração.

Situações houve em que me pareceu podê-las encaixar, mas foi sempre em vão. Numa delas apareceram três referências que se iam «ajustando» ao que idealizara, mas depressa se desmoronou o objectivo.

Tal como esta, as restantes tentativas foram sempre em vão.

Exceptua-se uma, noutra publicação, que foi suficientemente evidente para identificar a personagem em causa.

Considero que esta dificuldade é consequência do mérito do autor, que teve o cuidado de, subtilmente, evitar estabelecer ligações que pudessem ser identificadas com eventuais casos verídicos.

Sendo um apologista de soluções agradáveis, fiquei deveras satisfeito por, na cena final descrita no livro, ter sido permitido ao Severino e à Catarina que ficassem a ver o céu, à espera que uma das estrelas que o povoam lhes caísse aos pés.

Admito que a bruxa da Corte da Pomba já não estará entre os vivos, porque se tal acontecesse seria quase bicentenária, pelo que me arrisco a pedir ao António que, caso tenha conhecimento da existência de algum seu descendente, com capacidades idênticas às dela, me indique a forma de o contactar. Gostava de conhecê-lo, porque um ser com recursos desta natureza pode ser sempre bastante útil para embalsamar certos passarões que o merecem.

Não sei de quem foi a ideia da escolha de uma «estila» como lugar para apresentação pública desta obra.

Pela iniciativa, deixo a expressão do meu agrado, por entender que constitui um justo tributo ao medronho, leia-se medronheiro.

Parece-me poder afirmar, sem grande receio de errar, que desde há séculos a cultura do medronheiro constitui a actividade mais comum do concelho de Monchique, seja sob o ponto de vista de tradição, seja no que respeita ao aspecto económico.

A cultura do medronheiro está disseminada pela totalidade do território, desde que os solos ofereçam condições para que ela se desenvolva.

A melhor prova do que afirmo é dada pela existência de algumas dezenas de instalações rudimentares, outrora destinadas ao armazenamento e à fermentação do medronho, bem como à sua destilação.

A esmagadora maioria das mesmas é hoje identificada por ruínas, ou somente por meros vestígios, que se encontram nos vales e nas meias-encostas por toda a serra.

Há que atender a que o medronho atenuava algumas das necessidades económicas primárias das populações, em especial dos pequenos e médios proprietários e dos apanhadores.

Receitas monetárias provenientes do medronho constituíram sempre um suplemento do sustento daqueles.

Poder-se-á argumentar que o montado de sobro é mais valioso, em termos absolutos.

Talvez.

Há que ter em conta, todavia, que mesmo que assim aconteça esta cultura beneficia um número consideravelmente menor de agricultores.

As condições em que a maioria das «estilas» antigas funcionavam eram deploráveis, no que respeita aos aspectos de salubridade e higiene, podendo ser classificadas como impróprias.

A cultura actual do medronheiro, embora tenha reduzido o número de activos empenhados, melhorou de forma substancial as condições de fermentação e destilação.

Esta afirmação é confirmada pelo que encontramos nesta sala modernizada, onde impera a higiene e a funcionalidade, valorizando a actividade, pelo que aos respectivos proprietários expresso as minhas felicitações pela iniciativa do empreendimento.

Quero ainda esclarecer que a elaboração deste escrito somente foi possível devido à colaboração técnica dos meus filhos, visto que a minha aptidão para utilizar os meios informáticos é nula.

A terminar…

Para o autor, um abraço de amizade, com desejos dos maiores êxitos.

Para os que me escutaram, os pedidos de desculpa pelo incómodo, que poderia ter sido ainda pior se o tempo não tivesse sido suficientemente curto.

Fico muito agradecido a todos!

 [Texto: José Franco Costa Duarte]