Matéria de cidadania

Texto de António Souto, autor do livro de crónicas Hoje é Tudo Falso (ed. On y va).

 

Não é já a estação certa, mas não resistimos à tentação de descer à primavera, por via de floreios, e trazer para este escrevinhar umas despreocupações de gente que se diz frequentemente inquietada, quiçá para ficar bem no boneco, como sói dizer-se na gíria. Assim uns apontamentos que a memória registou, por caricatos, ainda que o sério da questão seja evidente e merecesse desvio.

Dos rituais da Queima das Fitas, chegou-nos a notícia da estudantada coimbrã que, em entusiástica folia no celebérrimo cortejo, deixou este ano atrás de si umas trinta toneladas de lixo, grande parte dele plástico, que os almeidas da urbe trataram diligentemente de recolher logo que evacuadas as ruas e os becos de capas, cartolas, bengalas e vapores etílicos. Caramba, três dezenas de toneladas são muitos quilos, e isto sem somar ainda o desmantelamento dos carros alegóricos e quanto sobrou do sarau e da garraiada e da queima do grelo e das noites do parque. E a toada reboando, pois então, que Coimbra é uma lição e que só passa quem souber e por aí fora…

Em maio ainda, mas com epicentro em Fátima, denunciou-se o estado deplorável em que terão ficado os trilhos das peregrinações e o próprio Santuário, todo ele atulhado de mantas e sacos e garrafinhas de amansar a sede e a devoção, plástico a rodos, de pouco tendo valido a campanha «Não lixes a tua caminhada» e o apelo feito ao cumprimento da fé sem pegada ecológica. Bem prega o livro sagrado às mentes acanhadas quão inescrutáveis são os caminhos do Senhor! Sobretudo na terra.

E também em maio se festejou na capital o título de campeão nacional de futebol. A Praça Marquês de Pombal voltou a servir de palco. Alta madrugada, e enquanto a «loucura» dava lugar aos distúrbios, espraiava-se a lixeira pelos esteiros da rotunda. Nada de invulgar, celebração que se preze dificilmente rima com civismo. Vidro e plástico assinalando a façanha dos heróis e o júbilo dos adeptos. Os serviços da higiene urbana do município, com reconhecido «profissionalismo», zelaram pelo amanhecer imaculado, sem rasto.

Subamos agora ao verão, e a estes três casos descasados junte-se a catrefada de festivais ecléticos que hoje encharcam o país, de Portimão a Paredes de Coura, da Zambujeira do Mar a Viana do Castelo, do Meco à Ericeira e à Figueira da Foz, da bairrista Lisboa ao Porto invicto, combinando tudo em perfeita idiossincrasia, em folgança e javardeira. Comportamentos típicos da noite e das «movidas», de muita rapaziada indómita capaz disto e, ao mesmo tempo, de se mobilizar contra a poluição por plásticos e pela defesa do ambiente e da natureza e do planeta. Juventude (em boa parte) que organizadamente desencadeia greves climáticas, mas cuja prática é ainda avessa a uma disciplinada conduta.

Matéria de cidadania, vai-se apostolando, e que é na escola que se deve torcer o pepino. Porém, estamos em crer que a coisa vem de trás, de casa e da família, que é onde tudo começa. Nem sempre bem, infelizmente, para mal dos nossos pecados.

 [Texto: António Souto]
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