Ser conhecido não é o mesmo que ser importante

Texto de José do Carmo Francisco, poeta, jornalista e crítico literário, lido na apresentação do livro O Cão Atravessa a Cidade, de António Manuel Venda (ed. On y va), em Lisboa, na Universidade Lusófona (Auditório Prof. José Araújo, da Biblioteca Victor de Sá), a 18 de Fevereiro de 2020

 

Boa tarde a todos!

Obrigado desde já pela atenção dispensada à minha apresentação deste livro de poemas!

Peço licença para uma breve nota pessoal… Corria o ano de 1972 e esta era também a minha casa. Embora eu pertencesse à Escola Prática de Administração Militar, na Alameda das Linhas de Torres, vinha aqui muitas vezes em diligência. Em termos militares eu fui (e sou ainda) um homem da Contabilidade e Pagadoria. É esta a minha especialidade, cujo emblema são duas espigas de trigo. Isto tem a ver com a Geografia, como afinal tudo na vida. Fecha o parêntesis, ficamos por aqui.

Entrando na apresentação do livro O Cão Atravessa a Cidade, de 92 páginas e 25 poemas (um quarteirão, na fala do peixeiro num dos poemas), atrevo-me a constatar que qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar. Aprendi isto e muitas outras coisas importantes para a Vida e para a Literatura (nada pela vida literária, claro está) com Dinis Machado (1930-2008), que considerava num jogo ser o mais importante o pontapé de saída porque a partir dele todos os bons encontros dão bons resultados. Dinis Machado era filho do ferrenho benfiquista senhor Machado, dono do restaurante «Farta Brutos», no Bairro Alto, que um dia o levou à Sede do Sport Lisboa e Benfica no Jardim do Regedor aos Restauradores, pensando que o convencia a mudar de clube, mas a criança, futuro escritor, respondeu: «Sou do Sporting porque apertei a mão ao Jesus Correia!»

Quero recordar uma memória antiga da Serra de Monchique. Terá sido num sábado de manhã, no programa «Lugar ao Sul», de Rafael Correia, na RDP de Faro. Chegado à porta de uma casa no meio da serra, ouviu um pequeno cão a ladrar e dirigiu-se ao montanheiro com um alto e claro «Bom dia!». Mas o homem, à porta da sua casa, olhou com atenção para o gravador portátil a tiracolo e perguntou ao jornalista: «Isso aí é uma máquina para tirar retratos?» Ao que Rafael Correia respondeu: «É mesmo isso, são retratos da alma!» Como aperitivo já chega, vamos mesmo directos ao assunto.

Este livro de António Manuel Venda, O Cão Atravessa a Cidade, é também um conjunto de retratos da alma. Mas não só de modo implícito. Porque logo na página 9 se lê «o cão insiste/ para tirarmos uma fotografia» e na página 64 «lembro-me/ de tirar uma fotografia/ ao comboio/ a sorrir» além de na página 31 no poema se «tirar uma fotografia» à rosa vermelha do jardim que começa à porta de casa.

Voltando um pouco atrás, vou situar os poemas do livro a partir duma linha «Vida – Literatura», pois vejo no cão do título e do primeiro poema o elemento de transporte de três mundos (animal, vegetal e mineral) na cidade que é o lugar do confronto entre o rural e o urbano. Raoul Follereau (1903-1977) é conhecido como o apóstolo dos leprosos, mas iniciou a vida pública como poeta em 1920 e nunca deixou de o ser. Não é de admirar que um dos seus poemas em forma de oração (ou oração em forma de poema) diga isto, na minha opinião ponto máximo do poder de síntese: «Trabalhar para poder comer,/ Comer para poder trabalhar e, no fim, a velhice e a morte./ Não, não é esta a Paz que prometeste!»

Vitorino Nemésio (1901-1978) viveu no quarto de João Garcia (o protagonista do romance Mau Tempo no Canal), que era na Rua da Rosa e dava para o pátio do prédio onde está a minha casa no Bairro Alto. Ouvi o Mestre lamentar-se muitas vezes: «Já não se faz poesia descritiva, e é pena!» Num poema de 1935, do livro O Bicho Harmonioso, pergunta: «A poesia do abstracto?/ Talvez./ Mas um pouco de calor/ A exaltação de cada momento/ É melhor.» E, a seguir, responde: «Uma ideia só como sangue/ de problema./ No mais, não. Não me interessa.»

Temos então lado a lado a Vida e a Literatura, a Geografia e a Escrita. O poeta coloca-se entre o Mundo e o produto final do seu trabalho – o poema. Este livro tem um ponto de partida na página 31: «a minha terra/ o meu país do sul/ bem no alto/ sobre o oceano.» O seu poema-chave será o da página 35, que começa «imaginei que podia/ estar apenas a começar/ como se toda a vida vivida/ não passasse do meu nascimento/ que julgava tão longínquo/ e bem arrumado/ numa caixa de sapatos/ da memória» e termina «não haveria de ser nada». Este «nada», que faz parte do chamado «lugar-comum», tem a ver com o poema da página 43, que conclui com dois versos: «o que escrevi/ se calhar para nada.» E este outro «nada» tem uma carga negativa naquilo a que eu chamo o sistema cultural tenebroso. Portugal é o país onde o morto fala e o cantor não canta, o país onde Bulhão Pato é conhecido pelas amêijoas, Bocage pelas anedotas e Camões pelo olho perdido numa refrega. Basta pensar que no tempo de Cesário Verde o mais conhecido era Cláudio Nunes, no tempo de Eça de Queirós o mais famoso era Pinheiro Chagas e no tempo de Camilo Pessanha o popular era Augusto Gil. Era uma guerra perdida entre ser conhecido e ser importante. Os conhecidos perdem sempre.

Perante o tenebroso sistema cultural do nosso país, várias são as possibilidades de enfrentar o problema. Na página 16, afirma o autor: «mesmo assim/ não sinto vergonha/ do meu país do sul/ e das montanhas.» Mas o «Poseidon» da página 48 (Neptuno para os Romanos), Deus das águas e dos mares, era quase o nome do navio no qual Manuel Teixeira Gomes, o homem de Portimão, desiludido e revoltado com o sistema cultural português, embarcou para o seu exílio na Argélia, na cidade de Bougie. Digo quase porque era Zeus o nome, mas sendo o pai dos deuses anda lá perto. Não podemos esquecer que Portimão é muito perto de Monchique; mais uma vez tem tudo a ver com a Geografia.

Logo na página 3, numa espécie de «porta» do livro, o autor cita José Gomes Ferreira (1900-1985), que num poema considera a realidade um sonho absurdo. Já Camilo Castelo Branco (1825-1890) tinha afirmado que «a Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade».  António Manuel Venda (n. 1968) organiza nestes poemas a resposta a essa pergunta que José Gomes Ferreira tinha formulado. No poema mais longo do livro (página 51/ página 62), a oficina do poeta é a mesa do café/ pastelaria e o ponto de partida são dois objectos (o bolo e o sumo de laranja), mas o alcance mais profundo é chegar muito longe da chamada circunstância. Dito de outra maneira, o «homem tão estranho» é o autor do poema que viaja nas águas e nos mares da imaginação entre a paisagem figurada da parede do café e a paisagem real da Serra de Monchique. O poema faz um ajuste de contas com a realidade, recorda a moeda única, Schengen, Maastricht, o busto de Cristiano Ronaldo, mas o pretexto é uma infracção de trânsito que nunca se chega a saber se é real ou sonhada.

Uma vez que a realidade é dolorosa, tanto na paisagem como no povoamento, tanto nos três mundos como nas pessoas que neles vivem, uma das maneiras mais felizes de a abordar é a ironia. Por exemplo, na página 21, quando o poema refere um «ajuste directo» ou uma «direcção geral de meteorologia e desperdícios tropicais», ou ainda na página 84, quando o poema lembra os anões mascarados e conclui: «os baixinhos reinam/ por uma noite», ou por fim na página 29, quando o «vereador de serviço» não responde nem quando tratado pelo primeiro nome nem à segunda tentativa, e quando responde (trata-se de um antigo colega) é para desejar ao poeta «saúde da boa» como se houvesse, por absurdo, saúde da má. É o esplendor do delírio o «vereador de serviço» a julgar que é alguém só porque no momento tem um cargo municipal onde a alucinação está muito para lá das funções e das tarefas. Ou dito de outra maneira, na página 33 se pode ler: «o que não falta/ é monstros estúpidos/ por aí/ e fora dos monstros/ também há casos a lamentar».

Poderia falar da «flor da fortuna», na página 72, e da esperança que foi sepultada para vir a rebentar, ou das «oliveiras de pisa», sobre as quais é sempre possível dizer mais: «bastava querer/ bastava recordar». Ou então o poema da página 21, onde se lê: «podia continuar/ eu/ refiro-me a mim/ e a tudo isto», que cola no poema da página 39 sobre os três vendedores que trazem o peixe do litoral pelo barrocal até às aldeias dos montanheiros: «vá freguês/ é para acabar/ é para acabar/…/ mas nunca acabava.»

Ainda algumas palavras para situar este livro novo num sistema cultural velho e tenebroso como o nosso. Alexandre O’Neill (1924-1986) começa por definir Portugal como «um país de poetas que não lê os poetas», num texto de 1962, e conclui assim uma curiosa definição de Poesia Portuguesa daquele tempo: «vacuidade camuflada com palavras, estupidificante ‘diálogo’ com absolutos-de-algibeira, alpista de ‘mistérios’ que desprendem bafio, reaccionaríssimo testemunho de um ‘amor’ que se deseja eterno só para melhor eternizar a sujeição da mulher, em que pode interessar-nos esse como que monótono zunido que é o sinal sonoro da poesia portuguesa de hoje?» E, mais à frente, no início do livro Antologia Poética de Carl Sandburg, citava Lautréamont – «A poesia deve ter por objectivo a verdade prática.»

Carlos de Oliveira (1921-1981), em O Aprendiz de Feiticeiro, afirma: «A poesia teve quase sempre pouco eco no bolso do português que compra livros» e, mais à frente, confirma: «O meu ponto de partida como romancista e poeta é a realidade que me cerca», e conclui: «Escrever é lavrar e lavrar, numa terra de camponeses e escritores abandonados, quer dizer sacrifício, penitência, alma de ferro. Tanta colheita perdida na literatura e eu que o diga.»

E porque tudo isto tem a ver com palavras, não posso terminar sem fazer a citação de um poema de Michel Quoist (1921-1997) traduzido por Lucas Moreira Neves e revisto por Pedro Tamen na edição da Livraria Moraes: «A palavra é um dom de Deus. Temos de dar contas dela. É pela palavra que nos comunicamos de alma para alma, é por ela que nos revelamos. Não temos o direito de calar-nos: falar, porém, é grave e devemos pesar as nossas palavras sob o olhar de Deus.»

Oxalá este livro tenha os leitores que merece. Se não acontecer já, será mais tarde. O importante é não desistir. Nunca desistir. Ser conhecido não é o mesmo que ser importante. Ser importante é outra coisa.

 

[Texto: José do Carmo Francisco; na foto, ao centro, com o autor do livro e com Catarina Rosa, que leu três dos poemas; foto de Maria Ramires]