Irónico e inteligente, mas assustador

Texto de Cristina Alves, publicado no espaço on-line «Rascunhos» (https://osrascunhos.com) em Setembro de 2018, sobre o livro Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045, de António Ladeira (ed. On y va)

 

António Ladeira volta a surpreender-me com este livro. Ainda que tenha sido publicado primeiro que Seis Drones: novas histórias do ano 2045, li-os por ordem inversa, tendo tomado conhecimento da sua existência através do evento de lançamento do livro mais recente.

O livro começa com uma história num futuro pouco distante em que o papel, a caneta e o lápis são praticamente desconhecidos. Numa sociedade em que o imediatismo é ainda mais levado ao extremo, a possibilidade de escrever algo que possa durar décadas é uma espécie de mito mágico, mas vai ser possível para algumas crianças numa aula especial de um professor mais velho.

Na segunda história, Estás livre no Sábado?, tece-se uma paródia às escutas telefónicas, fazendo com que estas possam ser realizadas por encomenda, seja por empresas, seja por outras pessoas. Os ouvintes extra não só escutam os detalhes da conversa, como intervêm, defendendo os interesses dos que os contrataram para escutar.

Numa sociedade distópica de extrema vigilância tecnológica, O Inspector destaca-se por conseguir, através da sua intuição treinada, antever resultados que a tecnologia demora dias a obter. Facilitando algumas contra-ordenações de baixa importância (numa atitude condescendente), o Inspector vê-se de mãos atadas quando vários cidadãos aparecem com máscaras que simulam a sua cara, fazendo com que esteja em todo o lado e, simultaneamente, vigiando os ecrãs.

A grande história deste volume é a mesma que lhe dá título – Os Monociclistas. A reviravolta entusiasmante deste produto advém de um homem que se vê constantemente na sombra do seu irmão, de grande estatura e socialização fácil. Rapidamente se adaptam vias e se diminui espaço de circulação para carros e pessoas, e até se alteram restaurantes e casas, para que as pessoas se possam deslocar permanentemente nestes equipamentos.

Em Galeria volta-se a demonstrar a sociedade distópica em que vivem estas pessoas, de vigilância extrema e manipulação, não havendo inibições em quebrar as resistências de um indivíduo numa entrevista de elevada agressividade pelas autoridades. Já em O Complexo este controlo se sente, mas de forma diferente, mostrando como alguns podem manipular o sistema para seu próprio proveito. A antologia termina com O Contrato, mais curto, mas de grande impacto.

Irónico e inteligente, mas assustador, Os Monociclistas e outras histórias do ano 2045 reúne várias histórias de um possível futuro de grande controlo da população, controlo ao qual as próprias pessoas se submetem pelas vantagens que daí advêm. Estas histórias tornam-se assustadoras sobretudo por conterem sementes de possibilidades que reconhecemos no nosso quotidiano, desde a preguiça em dispor das próprias ferramentas para sobreviver à maior dependência da tecnologia e ao impor de limitações na exploração do que nos rodeia, impondo uma redução de curiosidade e de inteligência.

[Texto: Cristina Alves; imagem Os Rascunhos]