Barcelona, de António Manuel Venda – uma proposta de leitura

Texto de José do Carmo Francisco, de suporte à apresentação em Lisboa (Auditório Camões – Escola Secundária de Camões) de Barcelona, livro de poesia de António Manuel Venda (ed. On y va), a 20 de Maio de 2021; José do Carmo Francisco é jornalista, poeta e crítico literário

 

Em 1923 Jorge Luís Borges (1899-1986), argentino com origens familiares portuguesas em Moncorvo, publicou o livro de poemas Fervor de Buenos Aires. Em 2021, quase cem anos depois, António Manuel Venda (n.1968) publica este livro de poemas com o título Barcelona. Além dos títulos com referências a nomes de cidades pouca coisa aproxima os dois volumes: o primeiro é uma viagem sentimental pelas ruas de Buenos Aires, o segundo é uma viagem pelos sonhos e pelas memórias do autor.

Os vinte e cinco poemas que integram este livro são um transporte entre o sonho do futuro e a memória do passado. Uma ideia da viagem está inscrita no primeiro poema: «eu/ olhando para o céu azul/ um céu tão cheio/ tão cheio mesmo/ de estradas brancas/ perguntei-me/ baixinho/ quase como/ se não tivesse voz/ em qual dos pássaros/ pequeninos de metal/ poderia estar/ então/ se tivesse decidido/ precisamente/ nesse dia/ viajar para barcelona»

Um conceito de futuro lê-se na página 68: «o que interessava/ era marcar uma data/ para a reunião/ agrupar as hostes/ e avançar com a coisa/ ou melhor/ com as coisas/ as grandes coisas/ para ver se/ de uma vez por todas/ resolviam o problema/ do concelho/ se voltavam/ a pô-lo no mapa/ se é que alguma vez/ algum mapa/ já tinha referido/ o concelho/ entenda-se»

Um retrato do passado regista-se na página 13: «teria de recuar/ até à adolescência/ para te encontrar de novo/ teria de fazer/ todo o percurso/ desde o sul/ no autocarro/ que arranjaram/ para a escola»

Volta o passado na página 59: «éramos tão jovens/ naquela altura/ há tanto tempo/ o teu país/ ainda não estava/ na união europeia/ e a união europeia/ aliás/ ainda não se chamava/ união europeia/ embora estivesse quase/ a chamar-se»

Se o sonho é uma viagem, a viagem pode ser um sonho (página 75): «e eu/ quando durmo/ sabendo desta história/ quando verdadeiramente/ durmo/ por vezes/ sonho também/ e em cada sonho/ viajo para um país/ distante do lugar/ onde terei nascido»

Desde 1978, quando comecei a escrever no Diário Popular, tenho ouvido a pergunta («Para que serve a Poesia?») feita por poetas, ficcionistas, ensaístas, dramaturgos, editores, jornalistas, livreiros e não só. No livro Minha ex-mulher a solidão Vergílio Alberto Vieira (n.1950) responde de modo claro: «A Poesia não serve. A Poesia é.» Esta resposta leva-nos a um conceito da autoria de Camilo Castelo Branco (1825-1890): «A Poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade.» Se houver uma proposta de troca de palavras (sonho em vez de esperança e memória em vez de saudade) a ideia do autor de Maria Moisés liga-se à citação de Daniel Maia-Pinto Rodrigues (n.1960) que abre este livro: «Por onde passas descoses o tempo/ deixas aberto/ o princípio do sonho.»

A propósito do jogo da troca de palavras, vejamos a ironia do poema da página 30: «um sem saber o que dizer/ o outro com palavras de cobra/ melhor/ com palavras de sobra/ e ares de cobra/ mas só na altura/ em que algum jornalista/ lhe estendia o microfone». Ou também na página 39 a propósito de um ministro da Agricultura: «que o proprietário da herdade/ aliás/ considerava um homem sério/ (– um rafeiroso/ haveria de segredar/ mais tarde/ a uma amiga de longa perna/ perdão/ de longa data)». Ou ainda na página 45 a propósito das palavras certas: «nunca me esqueci/ daquela tarde/ …/ estava a observá-la/ …/ observá-la talvez nem seja/ a palavra certa/ …/ eu estava era a contemplá-la»

O tema do regresso é recorrente neste livro; veja-se a página 79: «fomos tão felizes/ os dois/ e sem sabermos como/ creio/ sem sabermos como/ tudo acabou/ …/ mas um dia/ vou chegar/ perto de ti». Tal como o tema do sonho está presente na página 75: «esse homem/ sonha/ parece dormir/ sentado no chão/ abraçado/ à sua ânfora negra/ de fabrico ateniense/ mas não dorme/ sonha apenas/ de olhos fechados»

Vejamos ainda as palavras certas na página 87: «tantas árvores/ que no pomar/ fui aliviando/ dos ramos velhos/ e deles/ construí/ (talvez seja/ permitido/ o verbo)/ desses ramos velhos/ construí/ uma fogueira» ou ainda na página 89 quando se faz no poema o louvor do ramo não reduzido a cinzas, um pouco à maneira de como em África se diz «um velho que morre é uma biblioteca que arde».

Original é o que quase ninguém é; comum é o que quase toda a gente é. No intervalo entre estas duas situações, um pouco na chamada corda bamba, circula o poeta e o seu poema. Tal como Alexandre O’Neill (1924-1986), António Manuel Venda poderá proclamar: «Não quero ser original. Tão-pouco quero ser comum.» Mas original é o mundo deste livro, sua paisagem e seu povoamento: a planície, o monte, a ria, a serra, a sobreira, a oliveira, o javali, a vaca, a gaivota, a felosa, o peixe, o bezerro, a perdiz, a lebre, o gato bravo e alguns outros mais. Essa geografia está inscrita na página 99: «as vacas/ andam/ pelo montado/ centenas/ elas e as crias/ e os bois/ creio que uma dupla/ já foram embora/ ficaram apenas/ as vacas e as crias/ pelo montado/ rapando a erva/ que podem/ guardadas pelas árvores/ de braços longos»

Mas este livro leva-nos também a Frankfurt («de todos os aeroportos/ esse é o que sempre/ evito/ recordar» – página 115) e também à festa dos caretos de Podence em Trás-os-Montes: «não era eu quem te olhava/ pensavas tu/ um pouco afastada/ mas era eu». Este poema da página 127 abre ligação a uma ideia de Fernando Pessoa (1888-1935), «O Poeta é um fingidor» não só de modo mais simples (no presente) sendo o poema uma máscara («escondi-me assim/ de ti») mas mais elaborado (no futuro) «feito um careto/ dos que mais/ admiro/ dos que mais/ invejo/ dos que mais/ sonho um dia/ vir a ser/ verdadeiramente»

Nada neste livro fica a meio: a viagem iniciada na página 7 termina na página 131: «tenho uma fotografia/ curiosa/ bem curiosa/ de barcelona/ numa movimentada/ praça/ de que nem fixei/ o nome»

O poema da página 111 convoca quanto a mim uma dupla inscrição literária: primeiro o Ulisses de James Joyce cuja linha narrativa se passa toda no dia 16-6-1904, afinal um dia que simboliza a vida. Cito umas linhas: «Não obstante alguém o tinha amado, levara-o nos braços e no coração. Ela amara-lhe o sangue aquoso e fraco que do dela fora escoado.» O amor é afinal a única coisa verdadeira da vida – concluo eu, à boleia do autor deste hoje clássico, escrito entre Trieste, Zurique e Paris. Depois é São Paulo na sua Carta aos Coríntios quando escreve: «O amor nunca acaba. As profecias hão-de acabar. As línguas silenciar-se-ão. O conhecimento falhará. Restam a fé, a esperança e o amor. Mas o maior de todos é o amor.»

Esse poema da página 111 convoca memórias de leitura, mas não só: por um lado cruza «a verdade das coisas e as coisas com verdade» (como escreveu Maria Eulália de Macedo – 1921-2011) mas também mostra como o poema pode ser um espaço no qual estamos todos juntos: o autor, os leitores, as leituras paralelas e convocadas, implícitas e explícitas, o mesmo é dizer a voz do Mundo. E até na adversativa dos versos finais se percebe que afinal o poema vive dessas recordações que o seu articulado procura evitar: «de todos os aeroportos/ esse é o que sempre/ evito/ recordar»

Uma nota final. Vejo esta poesia como límpida, incisiva e eficaz. Límpida porque sem gorduras de retórica. Incisiva porque vai directa ao assunto. Eficaz porque produz um efeito no leitor, não o deixa ficar indiferente. Estas qualidades, que um dia em 1983 Isabel Pires de Lima viu num livro meu desse ano, são as mesmas qualidades que hoje julgo ver nestes poemas de António Manuel Venda. Escrevo «julgo ver» e não «vejo» porque tudo na Literatura como na Vida é relativo, embora de modo absoluto.

[Texto: José do Carmo Francisco]