A tal manhã

Texto do escritor e poeta Paulo Rosa, de suporte à intervenção na sua terra, Monchique, na sessão solene evocativa do 25 de Abril de 1974, na entrada dos Paços do Concelho

 

Oito horas da manhã. Oito horas em ponto da manhã. Era o que diziam os relógios, mas nessa manhã os relógios diziam as horas na dúvida, a medo, porque quem era dona do tempo era a Emissora Nacional. O tempo não era uma questão de medição do movimento desde o Big Bang e não tinha a ver com a embriaguez rodopiante da Terra, nem com a sua andança cortejadora ao redor do Sol, nem com o mavioso enlevo da Lua, namoradeira, eternamente a mudar de pose sem nunca conseguir resolver o seu problema de atracção pela Terra.

E a Emissora Nacional não dizia nada. Nem as horas. Todos os dias, num determinado momento, a Emissora Nacional determinava que eram oito horas da manhã. Por assim dizer, mandava o povo, quer dizer, a nação, sair da cama e oferecia-lhe a ginástica matinal do Dr. Marques Pereira: «Um, dois, estende o braço, encolhe a perna, baixou, levantou.» Era assim todos os dias, ao som do piano, de modo uniforme e rotineiro, sem nada mudar porque estava tudo bem e sem nada falhar porque tudo devia obedecer a uma ordem, para glória de Deus, orgulho da Pátria, harmonia na Família e sossego da Autoridade. Mas, naquele dia, a ordem fora interrompida, ou porque o dia nascera antes do tempo e, portanto, à revelia da ordem e da autoridade, ou porque o tempo tinha parado, ou voltado para trás, ou saltado em frente… alguma coisa nunca vista nem pensada, alguma coisa trágica tinha acontecido. Isto é o meu testemunho.

Eu, miúdo campónio, aluno do Colégio de Santa Catarina, de Monchique, nesse dia levantei-me ao som circunspecto de música de câmara e não do verbo cadenciado do Dr. Marques Pereira, e tomei a camioneta da carreira de Marmelete, da empresa Castelo & Caçorino. Ouvi então, de uma passageira, a expressão «talvez um golpe de Estado», conceito que era novo para mim, não constava nos manuais de História, tal como uma palavra que nos tempos seguintes estaria na boca de toda a gente mesmo na daquelas pessoas a quem causava fastio, engulhos e má digestão: liberdade. A palavra liberdade estava agrilhoada nos dicionários e não podia sair de lá. Como foi libertada de rompante, saiu impetuosa como animal bravio a que abriram a gaiola e até pariu muita libertinagem e, durante algum tempo, até foi novamente encarcerada de uma forma ainda mais severa e vigiada e com reforço de uma «muralha de aço», até porque o primeiro-ministro da altura – e que hoje é condecorado – dizia que «não se pode arriscar perder pela via do voto aquilo que tanto nos custou a ganhar pela via revolucionária».

Mas voltemos à tal manhã. Não sabia eu, nem sabiam os meus colegas do colégio (que não ouviam a ginástica porque se levantavam quase todos meia-hora mais tarde), a quem dei a notícia do tal golpe de Estado, sem contudo receber a atenção e a notoriedade que julgava merecer, que afinal essa manhã tratava-se da madrugada que o Salgueiro Maia vinha trazer a Sophia, que há muito dela estava à espera.

Hoje, num velho ritual que se repetirá enquanto outro regime não substituir este por o achar velho e caduco e glorificar outra data, festejamos apinocados e orgulhosos o 25 de Abril. Mas devemos festejar com igual fervor e devoção o seu irmão, gémeo monozigótico, o 25 de Novembro, certos de que sem o primeiro não haveria o segundo e sem o segundo dir-se-ia do primeiro que mais valia o soneto do que a emenda.

Mas há quem diga que o tempo é determinado por um eterno retorno, que tudo o que foi, é, ou volta a ser, e que o começo é simultaneamente um fim e vice-versa. Por isso, temos de estar atentos, vigilantes e empenhados, porque nada é garantido, permanente ou imutável. Pode acontecer a todo o momento um 24 de Abril ou, pior ainda, um 24 de Novembro. E se nos distrairmos e deixarmos isto acontecer, perdeu-se o «dia inicial inteiro e limpo», voltamos a cair na «noite e no silêncio» e deixamos de, em liberdade, «habitar a substância do tempo».

Cabe a todos nós, que nos julgarmos livres de espírito, velar de forma militante e permanente pela defesa dos valores da universalidade, da igualdade, da democracia, da vida, da solidariedade, da liberdade e da paz, porque só assim se pode almejar o grande desiderato da espécie humana: a felicidade.

[Texto: Paulo Rosa]