Não mais do que uma leitura

Texto de José Alberto Quaresma (professor, autor da biografia de Manuel Teixeira Gomes), de suporte à apresentação do livro de poesia «Um Tributo a Monchique» (ed. On y va), de Paulo Rosa, a 24 de Setembro de 2022, em Monchique (Salão da Cooperativa Agrícola)

 

Nutro por Monchique dois estados de alma que se guerreiam entre si. Um sentimento de culpa e uma paixão assolapada.

Quanto ao primeiro, o néctar dos deuses, ou dos diabos da serra, o medronho, castigou-me de forma tão severa que continuo a resistir a nele molhar os beiços.

Há muitos anos o medronho levou-me numa viagem épica entre Monchique e Portimão. Conduziu-me o carro, obrigou-me a fechar um olho, para não ver duas estradas. Na realidade uma autoestrada com milhares de curvas que nunca mais deixavam de se enrolar. Três horas aos baldões sem me esparramar contra um castanheiro. Sobrevivi, como se nota.

O poeta Paulo Rosa então não me pôs de sobreaviso:

Tomada de supetão, ó aguardente,/ És mãe de bem-estar e alegria/ E madrasta da paixão incontinente.

O segundo estado de alma também é genuíno. Desde os muitos amigos que o meu pai aqui tinha, aos muitos que o filho do meio foi fazendo, a desandar nas ousadas excursões ao Água da Sola, ao Cinzas, ao Selão, por muitos estabelecimentos de encanto, evasão e perdição sempre adiada. Felizmente.

A paixão por Monchique obriga-me também a ir às arrecuas a perscrutar as boas famelgas Pacheco de Manuel Teixeira Gomes. E agora, num livro que está no prelo – «João de Deus – Vida», à coca de admiradores de João de Deus, como o professor Gascon, que se instalaram no meu convívio sem pedirem licença e que contribuíram de forma épica para que a luz relapsa da alfabetização entrasse na cachimónia e na alma de muitos habitantes da vila e da serra.

A paixão por Monchique continuará até este pedaço de vida se transformar num sienito inerte, informe e nefelínico… sei lá!

Sou manifestamente incompetente na função de apresentador de uma obra literária. A crítica literária sempre fugiu de mim, ou eu dela. Se não sou de fiar na criação literária, muito menos o serei na análise da de outros.

Tenho apenas dois livros de poesia publicados. «Ecolalia», o menos antigo, e «A Pose Extática», Prémio Revelação da APE, há mais de trinta anos. Mas o Paulo Rosa e o António Manuel Venda mandam muito em mim e aqui estou para partilhar uma indigente leitura de «Um Tributo a Monchique».

As frouxas competências não me impediram, com os olhos bem abertos, de entrar na poesia de Paulo Rosa. Só tenho um qualificativo ou um verbo denso. Gostei! Muito.

Paulo, seguramente sem o sonhar, entrelaçou-se nalgumas afinidades com o moço de São Bartolomeu de Messines, João de Deus, nascido em 1830. Este cursou Direito, na Universidade de Coimbra, levou dez anos para tirar o curso – a sua guerra de Tróia, como gostava de repetir, quando não havia então outro lugar para o fazer.

João de Deus foi também advogado de apenas uma causa conhecida e o extraordinário poeta que bem conhecemos. É ele considerado o primeiro da Europa, e que influenciou infinitos poetas de primeira água, de Antero de Quental a Eugénio de Castro, para não falar de quase todos os algarvios, do século XIX ao XXI. Aqui, no Algarve, germinam enormes poetas, entre a esteva e o salitre, que me escuso de lhes relembrar o nome.

João de Deus descambou na educação dos analfabetos, os mais humildes de todos, a única missão que levou a sério em toda a sua vida.

Paulo Rosa já se vê que não quis deixar João de Deus sozinho. Advogado, professor, poeta. Sempre porfiando. Quem porfia mata caça e o Paulo mata muita. E se trago aqui o João de Deus a visitar o auditório da «comprativa» de Monchique é porque estou seguro de que gostaria de conhecer o Dr. Paulo Rosa (O JD também era tratado por DR e perdoava o desplante aos menos íntimos).

****

A epígrafe telúrica de Miguel Torga abre o livro. Bem achada. É na terra que a poesia de Torga se funda, como este livro de Rosa.

Esta coleção de poesia, «Um Tributo a Monchique», é necessariamente fragmentária. A inspiração surge como surge. Os momentos que se entreligam na hora de cercar os poemas para edição nem sempre existe, ou é notado, o fio narrativo.

«Tributo» junta poemas de inspiração diversa e muitas vezes contrastante. Mas traça um roteiro sentimental coeso dos lugares da terra, das suas gentes, idas e estadas, e dos bichos que a habitam.

O poema inaugural de «Um Tributo a Monchique» remete, não sei se voluntariamente, para «A Noção do Poema» (1972), o primeiro livro do nosso extraordinário poeta, portimonense e do mundo, Nuno Júdice.

Traz-nos muitos eflúvios e matéria da serra, tal como «O Perfume da Esteva», o primeiro livro do Paulo. Eleva-se em versos de intensas e contrastantes melodias que nos sacodem aos solavancos pela serra acima ou abaixo onde os nossos pés se firmam e de onde é fácil soltarem-se.

… Vês como um poema depois de lido é tão fácil de fazer?/ Mas engoma, desbasta, destila, apura, tempera,/ caldeia, repinta, afina, refina, recorta, escova,/ sublinha, sublima, apara e poda/ Que o sal do suor é que lapida a gema. (Introito)

Este conta mesmo. Faz a entrada opulenta para o narrador descer à matéria ou corpo onde subjazem os poemas.  O poeta, ou o narrador que se veste nele, leva-nos pela sua mão inspirada à omnipresente serra. Omnipresente na geologia e na alma dos monchiquenses, os seus lugares-comuns, comummente vividos por infinitas gerações, porque neles enfeitiçados desde a aurora dos tempos.

O grande espaço a roçar o infinito erótico e mais lá onde se colhe a inspiração de todos os versos:

 Duas mamas erectas, túrgidas/ Encimadas com mamilos de sienito nefelínico.

É a passagem breve que depois vai refrescar-se num lirismo consolador. O poema e a serra exigem o que só no cogito da escrita se consegue.

 Na serra/ Até quando as aves cantam/ O riacho rumoreja/ E a brisa dança por entre as folhas/ É a pedir silêncio. (II)

A poesia de Paulo Rosa é sempre, sempre, a revisitação nostálgica de Monchique e dos seus lugares.  O Barranco dos Pisões:

aconchego de verde roubado ao Paraíso (XV)

As ruínas do escalavrado convento da Nossa Senhora do Desterro:

hoje vaidade envergonhada/ Filho da esperança desiludida/ Todos me acenam, mas ninguém me abraça. (XIII)

O desterro, minha Nossa Senhora, digo eu, a que as seculares governanças ao longo de séculos votaram o mais nobre edifício de Monchique.

Subimos à Fóia a «torre de menagem» a espreitar o Algarve «pelo ombro da irmã». Ou descemos ao Largo dos Chorões, na «concha de serra bordada a casario» a memória delével dos chorões

Descemos às Caldas de Monchique, onde sempre se procurou o milagre para a cura das maleitas. Até D. João II por aqui se encharcou de água alcalina com PH elevado.

tantos, tantos/ De raiz plebeia ou seiva azul/ Irmanados pela dor e fé na cura/ Que a água traz na volta das funduras. (XXXIII)

E até o Colégio de Santa Catarina que «Ensinou tantos a ler que um lhe escreveu o epitáfio. (XIV) Também aqui neste prestigiado estabelecimento de ensino, estou em querer que a «Cartilha Maternal» andou a abrir as lindas cabecinhas dos bons meninos e meninos, hoje gente graúda ou mirrada sob a laje do tempo.

Paulo Rosa subiu largos e estafados socalcos da serra literária neste segundo livro face a «O Perfume da Esteva». Amadureceu o poema. Sobe mais ligeiro e denso ao cume da Foia ou da Picota sentidas por dentro.

Nem notamos a respiração arfante, apenas pelo peso da caçadeira e dos javalis que tem de arrastar para o quintal para os sangrar. Obriga-nos a conviver com a infinita bicharada da serra. A víbora-cornuda que «toma banhos de sol em toalha de carqueja» (XXVI). A águia-de-bonelli com os seus «penugentos herdeiros do ar e da paisagem» (XXIV) e até o lince ibérico onde nele «ensaiou a estupidez o drama da extinção». (XXV)

Obriga-nos, também, a intimidades com os incríveis seres humanos que habitam este cantinho luminoso, o Picadas, o Ti Veja, o Ti Manel Mil-Homens, o Zé do Corgo do Vale, o senhor Torrinha, o Senhor Campos, o Silva Carriço…  É o humor, a ironia, e o carinho que revivem nesta poesia de abraços tocantes.

Não destrata. Trata os diferentes por iguais na sua humanidade e surpreendente originalidade. Na sapataria do senhor Fernando onde chegou a haver «quarenta sapateiros e seis sapateiras/ Entulhados numa sala»: «E agora só tem um sapateiro, um gerente e um dono/ Que são três: o senhor   Fernando.»

Os velhos da Fonte Velha:

Esgueiram-se os velhos um a um rumo à enxerga/ Até que o dia seguinte madrugue nova tarde. (XIV)

Até o meu bom José Manuel Furtado, o da botica, é para aqui chamado na sua festa dos 70, «cansado de fazer sessenta e nove». (XXXI)

Paulo Rosa tem em comum com João de Deus a leveza airosa com que se move entre a linguagem erudita e popular. Inúmeras referências fundadoras da nossa civilização, na mitologia e nos grandes escritores da antiguidade clássica (ainda aqui, como em João de Deus, manda o latim das ciências jurídicas e da grande literatura).

Como João de Deus, também consegue saltar de um registo lírico quase pungente para um outro com a ironia a sobrelevar o discurso poético, em muitos sonetos entretecidos com mestria.

Foi João de Deus que nos anos 50 do século XIX recuperou o soneto para a excelência da produção poética e da literatura. Foi considerado o novo Camões por todos os grandes escritores do seu tempo (de Camilo a Eça, passando por Antero e tantos outros).

Paulo Rosa também investe na criação de fábulas numa evocação porventura involuntária também de João de Deus, que foi o primeiro tradutor que deu novas roupagens poéticas, nomeadamente às de La Fontaine.

O poeta deambula inspirado pelo verso curto ou largo, pelo soneto bem rimado.

É no longo poema final «Ode à Vila» (XLIX), que o tributo a Monchique se amplia, recopila e recria, em pinceladas largas, o conteúdo de todo o livro.

A folhear as páginas de «Um Tributo a Monchique», é explícito um ajuste de contas afetuoso e rendido à terra, elevando-a como poucos, e de forma tão despida, ousaram.

A serra é o infinito. Dos seus cumes avista-se o vasto oceano, a larga planície, e a imensurável abóboda do cosmos que tudo envolve.

O livro procura expandir-se por esse infinito, a partir destes lugares de vida e memória que se confundem no silêncio da leitura.

 

[Texto: José Alberto Quaresma, 24 de Setembro de 2022]