Chegar sempre pela primeira vez

Texto de António Manuel Venda, de suporte à intervenção a 25 de Fevereiro de 2023, na Casa Álvaro de Campos, em Tavira, sobre o livro «O que Foi Cidade» (ed. On y va), de Liyanis González Padrón

 

A leitura que faço do livro «O que Foi Cidade», obviamente uma leitura muito pessoal, é como uma memória. É sempre como uma memória. Conheci os seus poemas na língua original, dispersos por vários livros, registados em vídeos com leituras da autora, em revistas e até, num ou noutro caso, com a surpresa de estar diante de um texto inédito.

Ao longo de mais de um ano, acompanhou-me a sensação de ter encontrado uma voz única, marcante, sempre surpreendente, uma voz que me leva a chegar a cada poema, a cada leitura, como se fosse a primeira vez. Mesmo agora conhecendo tantos dos seus versos quase de forma igual ao que conheço, ou recordo, por exemplo, momentos da minha vida.

Ainda assim, a sensação é a de chegar pela primeira vez. Podia dar um exemplo de um poema, nem sei, da literatura portuguesa, um dos que até trago dos tempos do colégio em Monchique, ou um dos da escola em Portimão. Podia dar um desses exemplos, com o poema imutável, verso a verso, igual ao que sempre vi e li. Mas não vou dar exemplo nenhum. Todos os exemplos são bem conhecidos. Tanta gente que os recorda em Portugal… Refiro o tema apenas por comparação, para ajudar o meu raciocínio, marcando o contraste, porque no caso do livro «O que Foi Cidade», aos seus poemas tenho sempre a sensação, reitero, de chegar pela primeira vez. Pelos caminhos de descoberta que me apontam, pelo combustível que trazem à minha cada vez mais ténue capacidade de pensar, pela maravilha de despertarem as minhas emoções, até pela grandeza de me confrontarem com a ignorância particular que carrego na cabeça e me ajudarem, tanto tempo depois de ter nascido, a crescer um bocadinho.

O livro começa com um poema chamado «Celebração» – no original, mais bonito do que em português, «Celebración». Tenho para este poema uma imagem que muitas vezes ouvimos: a da escultura que sempre existiu dentro da pedra, que desde o começo nem sei de que tempos estava lá, pacientemente, aguardando que uma pessoa, um escultor, uma escultora, a mostrasse ao mundo. Vejo neste poema, «Celebración» – digo em castelhano porque acho mesmo que é mais bonito –, vejo no poema uma imagem de algo que já existia. E que a autora apenas nos revela. É o poema da harmonia mas ao mesmo tempo da surpresa, do ritmo e também da espera nas pausas que sentimos que temos de fazer na sua leitura, da sabedoria, da interacção com quem lê, fazendo, acredito, com que volte atrás nos enigmas deixados pelos jogos com as palavras. Enigmas, à primeira vista arrisco dizer impossibilidades, por não estarem ao nosso alcance, mas depois percebemos que afinal aquelas palavras descrevem o que tantas vezes é a nossa forma de agir. Dou o exemplo de algo que adiante transcrevo, de se fazer o que nunca fizemos, o que jamais fizemos, e quase sempre fazemos. Como noutros versos do poema, surgem-nos aqui as letras, as sílabas, as palavras, cada letra, cada sílaba, cada palavra, surgem-nos aqui como se tivessem nascido com o mundo e logo tivessem tomado, no poema, os seus lugares inamovíveis até ao infinito da eternidade. Diz-se que um poema nunca está terminado, com este «nunca» condicionado pelo tempo de vida de quem o escreveu. Compreendo a liberdade expressa na ideia, mas sinto que aqui, em «Celebración», está uma das excepções na poesia: nem em vida da autora me parece que seja possível mudar uma palavra que seja, uma letra até, uma letra que forme uma palavra, por exemplo. Aliás, na versão original há apenas uma palavra de uma letra, marca profunda de uma língua que a quem ama o português apela a um amor ainda maior.

Depois deste poema, de um «detenimento» que para mim é tão óbvio, deixo mais umas quantas observações sobre o livro, de algumas leituras, de momentos, observações de um tempo fugaz em que andei pelos seus versos. Poderiam assumir outra forma noutro tempo meu, essas observações, poderiam, acreditem, assumir outra forma, pelo que já assinalei com a ideia de chegar ao livro sempre pela primeira vez.

Uma observação tem a ver com a cidade, ou as cidades, se quisermos.

As cidades do livro, sem nome mesmo que suspeitemos quais são. Mas caracterizadas. E é por essa caracterização que nos chega um maravilhamento muito especial, misturado com espanto, estranheza, hesitação, temor. Provoca-nos tudo isto, ou antes, provoca-me, a mim. Só por mim posso falar. Se todos lemos, ou podemos ler, é certo que cada um de nós terá a sua leitura. As suas sensações. Pode até ser que a alguém chegue apenas a indiferença. Nunca sabemos além de cada um de nós. Nunca sei além de mim próprio. Por isso falo por mim no maravilhamento, no espanto, na estranheza, na hesitação, no temor. Falo do que decorre, estando eu sozinho na leitura, do confronto no papel com a cidade que tem garras («para que não te cerque com as suas garras/ outra cidade»), a cidade que poderá ela própria sonhar o mesmo sonho de alguém, antes que alguém tenha esse sonho; a cidade que é ao mesmo tempo sonhada, cidade «carnívora» que «uiva dentro da casa». O confronto com outra cidade, aquela que «lá fora» (e este «lá fora» faz-me pensar que o dentro de onde a vemos não deixa de fazer parte da própria cidade), aquela, dizia, que «engana o céu como cálices». Também a cidade «ambulatória» nesta série de confrontos (ideia minha, assinalo, ideia minha a de confronto, talvez errada, não sei, mas minha, na leitura muito pessoal que faço do livro, conforme referi logo a abrir); essa cidade «ambulatória», num dos poemas de «O que Foi Cidade», é devolvida a alguém, e o tempo que passa é dito como saltando os seus trampolins, uma imagem que retomarei adiante. Aqui, há uma coisa que devo assinalar, uma vez mais resultado de a leitura do livro ser muito pessoal: a minha visão, acredito que enquanto viva e tenha capacidade para pensar, a minha visão da cidade ambulatória, seguramente a mais de oito mil quilómetros de distância da cidade que inspirou a autora (e não sei se a palavra «inspirou» é a mais adequada), a minha visão dessa cidade é Portimão, tão perto de Tavira, onde estamos, a cidade de Portimão, em tempos Vila Nova de Portimão e depois de crescida apenas Portimão, como a pessoa adulta que é tratada apenas pelo apelido. Vejo-a sempre, Portimão, essa cidade adulta, vejo-a sempre quando desço da serra, com o hospital do lado de fora. O hospital é a sua marca mais notável para mim, notável no sentido de ver, de chamar a atenção. Quando li o poema («Despeço-me do homem»), vi Portimão, o hospital e depois as luzes de Portimão. E Portimão passou a ser para mim a cidade «ambulatória». E aqui talvez esteja a maior contradição no meu sentir em relação a este livro, aquilo da novidade, de chegar sempre pela primeira vez. Neste poema, bom, não no poema, no verso, apenas no verso, a cidade devolvida a um homem, a cidade «ambulatória», para mim, a cada leitura, é Portimão, adulta, tratada pelo apelido.

Ainda nesta observação da cidade, ou das cidades, deixo referências breves como um convite à descoberta no livro: cidades que «acendem a nostalgia», a cidade «alheia que nos observa», uma cidade «de horror» que se levanta, a cidade «sem ar», a cidade que «não tem lembranças», que não deixou recordações. Estas cidades surgem de repente em versos do livro, sem um aviso, sem que se saiba – sem que eu saiba, eu leitor, pelo menos eu –, sem que se saiba que já estamos dentro delas, descobrindo isso apenas nesses momentos.

Uma ideia marcante – e continuo na primeira das observações –, é a de olhar a cidade a partir de casa, mesmo havendo a referência à cidade «carnívora» que «uiva dentro da casa», como assinalei. De casa vê-se «lá fora o sol enfermo», doente sobre a cidade. Quando olha «pelas pequenas janelas», alguém acaba por dizer que «há cidades que acendem a nostalgia». E outro alguém observa de dentro de casa «a cidade no seu asfalto» e acredita que «uma árvore pode ter de morrido».

Nesta ideia da casa, do refúgio que significa, mesmo que a cidade chegue a uivar lá dentro, noto uma sequência. Vai-se tateando «pela casa», fala-se com ela, há silêncio, alguém está só, lá fora o vento anuncia uma nova estação e há um candeeiro que poderia dar luz mas que está moribundo, e na cidade que não tem lembranças surge o alívio de estar sozinha (tantas vezes a solidão neste livro, não apenas na casa, também nas referências a Cuba), e nessa mesma cidade sem lembranças um pássaro cinzento bate no vido da janela. Nas minhas leituras pergunto-me por quê. Por vezes, penso se quererá fugir da cidade onde já não existe a sua árvore, a mesma que poderá ter morrido com o asfalto. Em novas leituras, pergunto-me, o que poderei pensar?

Segunda observação: o inesperado.

Há tanto de surpreendente em «O que Foi Cidade». Muitos livros têm a surpresa, mas este tem a surpresa como marca, na queda de um verso para outro, na abertura de um poema, até na transposição de uma vírgula. Isso prende-me sempre na sua leitura, ainda mais porque o inesperado me surge invariavelmente como inesperado e me leva para novos caminhos. Com excepção, é claro, da cidade «ambulatória», tão distante e na minha imaginação tão perto de onde nasci. «Fazes o que nunca, jamais/ e quase sempre fizeste», dois versos, são dos mais surpreendentes do livro, e atrás aludi a eles. Assim como o verso que fala de sonhar a cidade em que alguém se sonha. Há mais, muitos mais exemplos do inesperado para mim. As referências à «infância/ de medos sem perguntas», o «desfiladeiro de lebres/ e de pombas maduras», «a fome/ que se embrulha nos jornais». Talvez o inesperado que mais me marca, e que me tenha inclusive salvo no trabalho de tradução do livro – sim, de certeza que me salvou –, talvez seja o verso «no meu copo de crescer», do poema «Nostalgias», que a autora dedica à mãe, Raisa Leonor. Não posso esquecer a tentação imediata de traduzir «el vaso de crecerme» para «o copo em que eu bebia». E logo, também de imediato, a sensação de estar a subverter tanto do poema, inclusive a fazer com que a casa da mãe fosse a casa da infância e não a casa para sempre da infância. E quanta diferença existe entre uma coisa e outra… Nesse verso tive o grande aviso, aviso que vejo que não é seguido em coisas que leio olhando também para o original e onde se chega a trocar uma estrada por um caminho entre uma língua e outra. Foi o grande aviso que tive, o aviso decisivo para não me armar em poeta-adjunto e limitar-me a trazer para a língua portuguesa, o mais fielmente possível em relação à escrita inicial, os poemas de «O que Foi Cidade». Tive sorte, devo reconhecer. A sorte de ter sentido a tempo o aviso, e tê-lo levado a sério. Podia não ter acontecido. Já falhei muitas vezes. Tento não falhar, mas nem sempre é possível. E depois, acredito, de nada nos vale aquela ideia simpática de «falhar cada vez melhor», tão conhecida.

O «meu copo de crescer», «el vaso de crecerme», surpreendeu-me também numa apresentação do livro a que assisti e em que de alguma forma participei lendo uns quantos poemas em português, depois da leitura no original pela autora. Foi em Espanha, na cidade de Granada, tão perto de nós. Alguém comentava, quando pedia um autógrafo no seu exemplar do livro, que esse verso do «meu copo de crescer» é por si só um poema. Eu não disse nada. Mas pensei, esse verso, um poema, mas mais do que isso, esse verso foi toda a minha salvação no trabalho de traduzir o livro. O verso que me surpreendeu, que me espantou, que continua a fazer-me pensar, mas também o verso que me salvou.

Deixo mais alguns exemplos do inesperado. «Trazes o passado que acende a tristeza»; «Os olhos acusadores de uma sombra»; «Alguém me diz:/ – átomo de menina,/ as pessoas criam as suas próprias auroras»; um «voo distante entre as pedras», um voo que brota das palavras; «um homem/ que fica sentado/ até à sua morte/ com uma rapariga altiva/ entre as pernas»; «o mistério febril da coruja», «o crepitar ansioso dos javalis»; os «baloiços de tinta» e as «vestes» dos profetas em cuja «virtude» já não se acredita; «a noite dentro da noite», neste caso a remeter-me para outro poema, distante no livro – tão distante que essa distância é o caminho desde o último poema para regressar ao primeiro –, «sonhas a cidade em que te sonhas».

Passo para uma terceira observação: Cuba.

É a pátria da autora, tão presente em «O que Foi Cidade». É o «país que [lhe] foge das mãos» precisamente no poema em que fala do pai e regressa «ao sonho/ sempre ao sonho». O país cuja paisagem a mãe leva «oculta entre as têmporas», a mãe, figura grandiosa de um dos poemas que mais se destacam no livro («Nostalgias»), é a mãe que leva essa paisagem, em casa, «Em cada quarto onde a música/ regressa a um tempo/ de boleros e fábulas», a mãe de quem que a autora imagina «os seus olhos perdidos/ contemplando o mundo/ na desordem do seu pátio».

Cuba tem em «O que Foi Cidade» um poema («Contra qualquer prognóstico») que eu vejo como um hino, um hino à ilha que sempre se leva «às costas», aconteça o que acontecer, independentemente do que se diga pelo mundo, mesmo quando «a ilha sangra/ mesmo assim» sempre é levada «às costas». Hino foi a palavra que escolhi para referir-me a este poema que como outros do livro ficará para um tempo futuro, imenso, um tempo distante no infinito que vemos quando olhamos em frente. Foi a palavra que escolhi, mas tenho outras, que deixo para mim, para dizer a mim próprio depois de cada leitura – uma delas é «odisseia», com uma visão do mar, pensando numa luta marcada pela coragem, pensando também no equilíbrio tão difícil entre a justiça, as emoções e as palavras.

Mas nesta observação, a terceira, não posso deixar sem referência a imagem para mim mais tocante, do poema «Em memória», na referência aos pequenos «pioneiros com os seus matinais cânticos/ por catedrais e baías havanesas». Guardo comigo as explicações, em cada leitura. Guardo imagens de mim, eu menino, imagens infelizmente só imaginadas, imagens que gostaria que fossem recordações mas que são apenas imaginadas. Também eu não creio «na virtude dos profetas», também «arrasto» as minhas «antigas derrotas», embora deste tempo de agora veja que quem perdeu, na verdade, foram as pessoas más, tenebrosas, que em menino conseguiram derrotar-me.

E há uma última observação, a quarta, que deixo sem comentários.

Os papéis de quem escreve os poemas. Estão no livro. É uma observação-convite, para que os encontrem pelos versos. E imaginem, como eu, por exemplo, uma noite, chuva, os pequenos sapos nas suas conversas tão repetitivas, e a escrita, a magia de escrever. Para que imaginem como cada poema surgiu nos papéis da autora. Eu imagino, tantos cenários, até sem os pequenos sapos, mas sempre a noite. E a cidade lá fora. Percebo que não vou falhar nunca, nunca mesmo, em cada imaginação minha. Porque nunca vou saber como foi.

Para terminar, duas notas, uma sobre Tavira e outra sobre o imperador Atahualpa.

Tavira, o primeiro lugar de Portugal onde a autora esteve, e onde está agora nesta apresentação na Casa Álvaro de Campos, a cidade que Fernando Pessoa sonhou para lugar de nascimento de um dos seus poetas-irmãos. É uma cidade que a autora adora, assim como adora Fernando Pessoa, e Álvaro de Campos, e todos os outros a que o grande poeta português deu vozes. A cidade que destaca pela sua beleza e onde se detém sempre que atravessa a ponte mais antiga do rio, com a história de amor que atravessa o tempo numa verdadeira ideia de eternidade.

Atahualpa, o meu herói de menino, das histórias que lia nos livros que a minha mãe me comprava. O imperador do Incas, que muita gente em Portugal «sabe», e friso aqui as aspas na palavra «sabe», que muita gente «sabe» que são do Perú, como os Aztecas são do México. Mas os Incas não são apenas do Perú, são também do Equador, o país onde a autora chegou em meados da década de 1990, à cidade de Quito, a capital, e onde viu serem publicados os seus cinco livros de poesia. Quito, a cidade tão alta da metade do mundo, e a cidade onde nasceu e viveu por 31 anos o meu herói Atahualpa, morto à traição por ordem de um figurão pouco recomendável, nosso vizinho, de Trujillo, alguém que conseguiu um lugar de peso na História, como militar, explorador e conquistador, depois de ter começado, ao que se diz, como tratador de porcos, suponho que os antepassados daqueles a que agora chamamos porcos ibéricos, porcos pretos ou pata negra, assim mesmo, no singular.

São apenas duas notas, bem fora do livro. Em breve regressarei a ele, e sei que vou chegar de novo pela primeira vez.

[Texto: António Manuel Venda]

 

19 de Março de 2023