A linguagem única da poesia
Texto de Manuel Matos Nunes, poeta e ensaísta, investigador do Centro de Estudos Regianos, de Vila do Conde, sobre o livro O que Foi Cidade (ed. On y va), de Liyanis González Padrón
Trabalho antológico composto por trinta e dois poemas referentes ao percurso da poeta cubana desde o seu primeiro livro de 2005. Apresenta uma epígrafe extraída de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, autor nascido igualmente em Cuba, no ano de 1923.
A epígrafe, dizem-nos Carlos Reis e Ana Cristina Lopes em Dicionário de Narratologia, invoca uma palavra autoritária, que é a de um autor ou obra com reconhecido peso cultural, capaz de desempenhar uma função de ordem temática, ideológica ou meramente reverencial.
Neste caso, parece ser evidente a dimensão poética da epígrafe escolhida. Kublai Kan, imperador dos tártaros, ouvia o que lhe contava Marco Polo, seu enviado às cidades longínquas do Império, apreciando mais as descrições fabulosas que ele lhe fazia do que os relatórios do estado das províncias, dos seus povos e das suas finanças. As dificuldades que o veneziano começou por sentir com as línguas do Levante, levavam-no a exprimir-se numa linguagem outra feita de expressões gestuais, da mostra dos mais variados objectos, improvisando pantominas que o seu senhor tinha de interpretar.
A poesia, como assinalou Ruy Belo, é uma doença da linguagem. O discurso poético é uma linguagem outra que não partilha do rigor semântico e sintáctico de outros discursos. Assim, a interpretação de um poema é por vezes mais do domínio da intuição do que da aquisição racional.
O que foi cidade (p. 39) é o título de um poema, diríamos axial, da antologia. Há nele um sentimento de perda e de evocações magoadas: «De repente,/ erguemos muros/ fizeram-se mais altos, mais cinzentos/ infinitos/ lombas de asfalto com arame farpado/ e amargos alaridos de sirenes». Lembranças de um tempo de «pardais nos fios/ letreiros/ bandeirinhas», antes de se ter levantado o horror. O sujeito lírico evoca uma transformação física, a emergência de um locus horrendus, e também o que está para lá do visível como experiência da ausência e da distância.
É por isso que este poema se articula com aquele de título Contra qualquer prognóstico (p. 45): «Contra qualquer prognóstico/ alheios ao nome que nos deram,/ a ilha sangra// Mesmo assim levamo-la às costas». A imagem da ilha carregada às costas (Cuba) é um emblema de valores identitários: a família, os afetos, a memória individual e a colectiva.
O conjunto de poemas antologiados revela uma circularidade que passa pelos blues de Ma Rainey, pelos versos de Blanca Varela, José Lezama Lima e Emily Dickinson numa catadupa de sentimentos em constante exposição do eu. Estamos perante uma poesia do eu profundo.
Celebração (p. 7), o incipit do livro, sente-se como um apelo ao futuro: o sujeito lírico sonha uma cidade e sonha-se a si mesmo, trazendo-nos à memória uma ficção de Borges, As ruínas circulares, na qual um forasteiro chega pela noite ao local de um templo arruinado com o desígnio de sonhar um homem e se sonhar. Mas não deixa de ser um sonho inquietante, porque «É uma cidade carnívora/ uiva dentro da casa». Premonição talvez. Enquanto o último dos poemas, Esta cidade não tem lembranças (p. 79), é o ruir do sonho inicial, voz de um tempo presente com a imagem poeticamente forte de um verso: «Um pássaro cinzento bate na minha janela». Um simples pássaro deixando nas asas feridas o sentimento disfórico da cidade alheia. «Nada, não escrevo nada// Devo acostumar-me a viver», como se já não adiantasse escrever mais e só a vida fosse habitável para, como se diz nos versos finais de Permanências (p. 33), «cavalgar/ em sonhos/ os potros que já se foram».
O discurso em O que Foi Cidade não faz concessões ao explícito banal, à palavra óbvia ou à exposição linear. Estamos perante uma poesia que foge quase sempre da narrativa e da explicação, poesia lírica no seu vero sentido.
E porque falamos de cidades, diga-se que a cidade, na sua representação física e sentimental, está muito presente nas geografias poéticas. Recordamos o spleen de Paris em Baudelaire, a melancolia do entardecer de Lisboa em Cesário, a descoberta de Nova Iorque por Lorca. Poetas forasteiros em locais alheios e nas suas próprias cidades.
Nesta antologia de Liyanis González Padrón são inominadas as cidades que a preenchem. Não as diríamos invisíveis, como em Calvino, mas de uma visibilidade só apreendida pela linguagem única da poesia, esse véu de emoções que ao mesmo tempo tudo oculta e tudo revela.
[Texto: Manuel Matos Nunes]