Olhar a vida e a escrita: como residir numa casa de palavras, como resistir numa casa de palavras

Texto de Paulo Correia, de suporte à intervenção que fez no dia 15 de Abril de 2023 em Monchique, na Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos (no evento «Olhares sobre  a Vida e a Escrita»)

 

Aqui neste terraço com vista, elimino todos os edifícios que se interpõem entre mim e o mar e penso num texto que traduza o meu melhor pensamento sobre a vida e a escrita, entre escrita e vida, mesmo que uma e outra se confundam na minha cabeça. Podia trazer-vos o lugar-comum de uma frase já proferida, a ironia, um relato profundo e elaborado, mas não, opto por um registo caótico. Opto pela revelação de um pensamento caótico que seja o motor de um texto não menos caótico, contudo um texto capaz de perspectivar um caminho: do caos à luz. Então surge o título «Olhar a vida e a escrita: como residir numa casa de palavras, como resistir numa casa de palavras», ainda indefinido (talvez por serem partículas alternativas de um título em construção) surgindo por entre as passadas que dou para ir buscar um livro.

(sento-me com o livro – livro Caótico ou Do Desassossego – sobre o banco a meu lado e anoto na margem do caderno de folhas pardas: texto para o dia 15 de abril, na Casa das Palavras na Serra dos Dois Dinossauros Adormecidos, a partilhar visões e olhares sobre vida e escrita, e podia ficar por aqui)

A primeira interrogação é se coexistem vida e escrita. E como coexistem? Contudo, surge-me uma ideia principal, como que impelida de dentro do caos, a propósito do tema que nos é proposto, e afirmo que escrita é poder, um poder tão pequeno e pessoal que pode mudar a vida das pessoas, de um leitor que seja. É a ideia principal que me surge, a do exercício de um poder pessoal e intransmissível, que pode mudar vidas: uma que seja.

«Oom, pode-se?», abria assim um livro do poeta Nuno Moura (Lisboa, 1970) «Prémio Nacional de Poesia» (Ed. Mia Soave, 2012).

Ora vamos lá, relativamente ao tema «Olhares sobre a Vida e a Escrita» gostaria de vos trazer algumas certezas e muitas dúvidas, equívocos, os erros, as titubeantes suposições, imprecisões, interpretações, tal como as sabemos na escrita e na vida.

Sobretudo o poder da escrita e no caso especial a de poesia, e lá vem o Pedro Oom, com a sua visão ou visualização do poder das palavras num poema seu:

 

Pode-se escrever sem ortografia

Pode-se escrever sem sintaxe

Pode-se escrever sem português

Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua

Pode-se escrever sem saber escrever

Pode-se pegar na caneta sem haver escrita

Pode-se pegar na escrita sem haver caneta

Pode-se pegar na caneta sem haver caneta

Pode-se escrever sem caneta

Pode-se sem caneta escrever caneta

Pode-se sem escrever escrever plume

Pode-se escrever sem escrever

Pode-se escrever sem sabermos nada

Pode-se escrever nada sem sabermos

Pode-se escrever sabermos sem nada

Pode-se escrever nada

Pode-se escrever com nada

Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever

 

O apelo à escrita surge de uma multiplicidade de factores, sendo a leitura um deles, bem como as regras e a violação das regras, o trabalho constante na urdidura do texto. No meu caso, a escrita foi nascendo de experiências pictorais, como o desenho, experiências que foram desaguando em pequenas explicações, como se o desenho não se bastasse para a compreensão, neste caso o desenho alimentou a escrita.

No entanto o poder de que falava não é um poder absoluto, talvez um poder desconcertante, talvez libertador, uma vida inspirada neste poder, só pode ser uma experiência enriquecedora.

Cada um tem o seu poder, para aliar ou contrapor a vida e a escrita, transportá-lo desde a mais tenra idade. Pela parte que me toca exerci o meu poder, desde muito jovem transportando novelos de papéis escrevinhados debaixo do braço; tem sido uma forma de exercer a minha cidadania. E vós, que fareis com o vosso poder?

[Texto: Paulo Correia]
20 de Abril de 2023