Prólogo do livro «Areia»

Texto de Liyanis González Padrón, poeta e professora de literatura; prólogo do livro de poesia «Areia», de Clara Andrade; ed. On y va, Novembro de 2023

 

Procura o poeta dentro do tempo. O olhar de oiro vê-se

reflectido nas suas mãos. E diz-lhe palavras que ele

desconhece porque não estão gravadas no seu rosto e

muito menos no seu pensamento.

Jaime Rocha

 

Diz-se que os tempos da poesia são os da sua enunciação e, portanto, através da linguagem, expressa não apenas a duração em que estamos vivos mas também que cada poema desenha o seu acontecer e a sua fluidez instantânea para gerar uma unidade com sentido. Então, a poesia deve possuir a intuição e o acaso das palavras de quem a escreve. Nesse processo, o poeta descobre a reconciliação do seu espírito porque se acalma e, ao mesmo tempo, vibra no seu interior ao outorgar um selo particular à sua própria essência linguística. Nesse estado dual de numen e acaso puro reconhecemos a arquitetura poética do livro Areia, de Clara Andrade.

O detonante do livro é constituído pela metáfora da «areia» como significante do transcorrer do tempo e da abordagem da matéria desamarrada, onde a poeta se liberta de ser sujeito lírico para estabelecer um diálogo filosófico consciente e eficaz com quem lê. Um exemplo disto é a frase «A resvalar entre os dedos: entre a areia e o tempo um velho pacto» [p. 11], que alude ao terreno e ao tangível ao explorar a procedência e o conteúdo dessa substância mineral convertida em imagem de assombro com a intenção de atribuir maior agudeza à aliança inesperada que os elementos «tempo – pacto» adquirem.

A voz da autora é o seu refúgio e também a encruzilhada como ato do fluir das suas emoções e dos seus impulsos vitais que constantemente enunciam um questionamento da sua existência. Veja-se quando refere «Lá dentro, o tempo bifurca-se perpetuamente na direção de um número incontável de perguntas, respostas que só a carne parece conhecer» [p. 52], para manifestar a reflexão do seu passado com o afã de evidenciar uma suposta incapacidade de discernir o conhecimento das coisas. Em contraposição, recorre à memória do que fica na «carne» como um estremecimento, mais uma marca do tempo que esboça a imagem precisa e enigmática de um presente ao gerar a firmeza do milagre e a relação com o desaparecimento desse mesmo milagre – por exemplo, quando diz: «E tudo o que somos se tornou areia./ Bastou um sopro na fundura mais negra de um buraco fechado escavado cá dentro.» [p. 14] Transmite nestes versos uma atmosfera solitária e sem esperança, mas apesar disso é capaz de mediar o que percebe e pensa, através de uma limpidez expressiva. Evidencia a sua necessidade de dizer o que não lhe basta, sempre com um labor estético rigoroso.

Em Areia o discurso poético confirma-se na incorporação de imagens simbólicas e sugestivas diante de uma realidade que denota a evocação do tempo. A expressão da vida adquire a aparência de um feixe de luz e das sombras que se projetam ao seguir um determinado curso entre «o que foi» e «o que é». O ser existencial carece da noção certeira de futuro, e só desse modo consegue compreender a presença humana. Em alguns poemas, a autora remete para essa premissa como representação de uma madeixa tecida na tradição feminina. Um segredo que rompe os seus silêncios deixa-se entrever em: «Mas as mulheres não sabiam dos seus gemidos feitos de cimento e areia, como não sabiam da extensão dos seus gestos contidos nas ínfimas partículas, girando muito na rigidez opaca das paredes./ Mas as paredes sabiam tudo sobre as mulheres que por trás delas viviam, e por isso gemiam opacas e fechadas sobre si mesmas das dores que as mulheres sem saber sofriam.» [p. 23] Aqui, uma vez mais, o conhecimento mostra-se carente, mas a memória coletiva recompõe-se como um rumor doloroso e pungente. A poeta faz uma indagação existencial da sua fé na palavra, o que manifesta a intencionalidade do uso da metáfora como linguagem insondável que se transfere em cada geração.

A multiplicidade semântica e a riqueza alusiva é provocadora na poesia de Clara Andrade. Torna-se visível uma aproximação à sensualidade da mulher como ser eternamente transmutável. A partir deste facto, constituem-se as formas sucessivas e a energia vital carregada de um valor erótico ao perceber-se a sua interação com «o outro» ou «os outros». Dessa perceção faz referência no seguinte trecho: «Imagino o meu corpo como um prado que voa, um cavalo a galope pela noite escura, uma estrela que canta (…) Um abraço ardente, o relinchar do sonho, os cascos cantando sobre a terra assombrada./ A paixão mordendo os flancos da noite.» [p. 20] Trata-se de elementos que remetem para o corpo como a forma que contém e oferece a expressão da liberdade e do desejo. Estes poemas não pretendem aprofundar o superficial da matéria, antes exigem um questionamento seguro do seu potencial estético. Para alguns filósofos, o ser mede-se com o ser. Daí surge a dimensão de construção ou destruição da sua existência. A poeta tem absoluta consciência desse pressuposto porque faz alusão a que o dito paradoxo não resolve a polémica. Por isso, as imagens convertem-se em suporte de horror e desastre. Um exemplo evidencia-se em: «Agora vamos com os pés dentro d’água, com os olhos doentes, as costas dobradas sobre a memória dos seixos./ Por cima de tudo ressoa um grito de coisas fétidas e nas correntes escuras formas plásticas entopem as águas.» [p. 45] Transfere a sua dor em lapsos mediatos e imediatos que a perpetuam num presente de fatalidade. Situa o seu ser e os demais seres numa soma de instantes – como a areia – que deixa ou não a sua marca no tempo e na sua história. Mesmo assim, a esperança também acontece quando decifra a origem da destruição, porque quer construir outro espaço temporal, como se voltasse ao refúgio milagroso.

Na composição dos versos, a autora usa uma conformação fónica de modo consistente e, através de uma métrica livre, reafirma as emoções expostas. A brevidade dos poemas cria um efeito de beleza rítmica pela qualidade textual e pela maneira simples de expressar o acontecimento lírico com um grande domínio da estrutura. Molda as diversas maneiras de comprometer-se com a continuidade do tempo, mesmo nos seus estados de repouso. Dessa forma, como é recorrente em todo o livro, regressa às frases verbais e substantivadas, no ato contemplativo através da ação de «olhar-se» e «olhar». Reafirma «o que ela é» e «como é» mediante a reiteração das sinestesias e das metáforas, o que se demonstra neste trecho: «Às vezes és só areia, matéria esquiva, insinuante, onde distraída enterro os dedos, bebendo as horas, olhando a praia.» [p. 13] Não há dúvida de que os versos são sólidos e bem traçados para insinuar um carácter confessional e de introspeção, mediante o excelente uso dos aspetos métricos e a conexão com os elementos figurativos da linguagem.

A poesia sustem-se na palavra para pôr à prova a sua própria existência. Areia é disso um exemplo fidedigno. Trata-se de um livro de cumplicidades que nos induz a olhar e a deter-nos na poesia de Clara Andrade, para nos redescobrirmos na sua voz luminosa e visionária. São poemas que predizem, anunciam e persuadem a partir dos significados da circunstância humana da autora. Dessa forma explora o dilema consigo mesma e com o mundo. Convence-nos de que o seu trabalho poético é verdadeiro. Não é somente poesia de enunciação, é reconciliação e reconhecimento no pensamento dialético de uma obra do seu tempo para todos os tempos. É o ato de fé com a criação e o seu carácter imperecível.

[Texto: Liyanis González Padrón]