Drummond e os dias andados

Texto de Pedro Teixeira Neves, escritor e jornalista, de suporte à apresentação em Lisboa (Universidade Lusófona) do livro de poesia «Insolúvel Flautim» (ed. On y va), de Manuel Matos Nunes (17 de Novembro de 2023).

 

Por onde começar? Pergunto: onde começa um livro? Há várias respostas possíveis:

Na cabeça do autor, fervilhando primeiro como chama, título ou verso, muitas vezes não chegando a passar daí, de uma ideia…; semanas, meses ou até anos depois, após muita maturação e transpiração; no momento, enfim, em que esse trabalho de silêncio e sombras, arrancado, o mais das vezes, à solidão, assume uma ideia de conjunto; no momento em que a primeira palavra surge na página branca e subitamente um conjunto de palavras, versos, poemas ganham forma, sentido, unidade…; ou ainda, nasce o livro apenas no momento em que esse magma de palavras é editado e impresso?

Eventualmente, o livro nasce da soma de todos esses momentos. Para outros, porém, um livro só nasce verdadeiramente no momento em que se torna partilha com o leitor e assim, ganhando vida própria, ganha vidas e sentidos outros e novos. Por outras palavras, só nesse momento cumpre a sua função, de ser linguagem e chegar ao Outro. Quanto a mim, um livro nasce duas vezes, nasce no seu autor e nasce de novo quando um primeiro leitor o abre. E nesta lógica, bem poderia dizer que cada livro nascerá as vezes que for aberto e lido.

Assim, um livro começa por ser compromisso do autor para com ele mesmo e o mundo à sua volta e depois compromisso com os outros, na medida em que os interpela e com eles interage, partilhando o seu modo/ testemunho de ver o mundo e o seu tempo. Não esqueçamos, a poesia sempre foi e continua a ser uma espécie de consciência do mundo, na medida em que busca um sentido filosófico para a vida, interrogando todas as suas possibilidades e limites.

Algo paradoxalmente, neste processo, o poeta é, simultaneamente, aquele que está e não está no mundo; voga nele, quase ausente, sem que dêem por ele, e ao mesmo tempo é ele quem pergunta o mundo à sua volta. Como escreveu Paul Celan, ele anda no mundo «ferido de realidade e em busca de realidade», ou seja, de sentidos para ela.

Mais prosaicamente, e de uma outra perspectiva, material, se quiserem, voltando à questão inicial, para mim, que vejo também o livro como um objecto artístico, o livro nasce e constitui-se também a partir de elementos eventualmente menos valoráveis aos olhos de outros. Falo de pormenores, para mim maiores, que começam na escolha do título, na imagem de capa, no próprio grafismo, nas epígrafes escolhidas, na escolha do papel, na opção da mancha gráfica do poema… São também elementos, por assim dizer, constituintes do que seja um livro por inteiro. Na escolha de cada um destes elementos sabemos ou intuímos estar, ou não, perante um Autor, autor aqui com maiúscula, e, sim, também perante um editor que preza o que traz ao mundo literário.

Mas porque acudo eu a estes particulares na apreciação que me foi pedida a este livro de poesia de Manuel Matos Nunes? Porque no imediato, ao tomar contacto com ele, primeiro por via electrónica, depois em papel, sentindo-o nas mãos, intuí estar perante aquilo que, face ao que atrás disse, chamo um livro. Ou seja, logo denotei os cuidados que gosto de ver empregues à feitura de um livro. Da parte da editora, o cuidado gráfico, o bom gosto na escolha da imagem de capa, a sobriedade equilibrada, sem ruído gráfico ou imagético, bem como, depois confirmei, o ajuste e correcção no que à inexistência de gralhas respeita. Da parte do autor, a exigência posta na escolha das palavras, versos e poemas.

E aqui chegamos ao coração do livro; o seu sumo, o que no seu dentro nos é dado a ler e virá depois a tornar este livro objecto de estima e desejo, vindo a ganhar, por méritos próprios, lugar na estante de poesia lá de casa. A começar pela estranheza do título, recluso de uma musicalidade para que a nomeação do «flautim» aponta, mesmo que substantivo algo turbado pelo adjectivo «insolúvel», que pode, pelo menos assim o vi, ser lido de duas maneiras: insolúvel como algo que não tem resolução possível, ou insolúvel como algo não dissolvente. Depois, a epígrafe de Julia Kristeva, de algum modo a resumir o mais que virá nas suas 92 páginas: a ideia de texto como mosaico de influências, absorção e transformação. Por fim, ou para início de embate com a poesia de Manuel Matos Nunes, ainda menção à reprodução inicial de um soneto de Carlos Drummond de Andrade:

Soneto da perdida esperança

Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
porque não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.

O mote fica dado a início; é sob o signo de Drummond, o famoso autor do poema No Meio do Caminho ou de E Agora, José, que este livro decorrerá.

Quer isto dizer, desde logo, que a poesia de Manuel Matos Nunes se assume e reclama como devedora do estar à poesia do mestre modernista nascido em Belo Horizonte, na povoação de Itabira do Mato Dentro, em 1902. É influência de vulto e também por isso no imediato aposta arriscada no que nos será dado a ler, isto é, o vir a estar, ou não, à altura da empreitada de poetizar, abro aspas, parafraseando um título famoso de outra área literária, «aos ombros deste gigante» das letras brasileiras. Fui pois a medo pelas páginas, não sem um suspiro de ansiedade face ao que encontraria, pelo desafio que se apresentava ao poeta, para mais eu, também eu, devoto desde sempre de Drummond de Andrade – e para vos afiançar da veracidade do que digo, recordo-vos apenas que quando, durante bons anos, fui director de uma revista de artes e cultura em que o nome do meu editorial era, nada mais nada menos que E agora, director?. Coincidências, dir-se-ia, ou talvez não se acharmos que tudo está estranhamente ligado… Talvez o António Venda, que nessa revista trabalhou comigo como cronista, se tenha recordado deste detalhe.

Drummond de Andrade nasceu naquela que veio a chamar «Vila da Utopia», a pequena povoação mineira onde dizia ter adquirido «o hábito de sofrer/ que tanto me diverte»… Logo se vê que haveria de ser poeta! Estuda em Belo Horizonte, depois em Nova Friburgo e começa a publicar em jornais em 1918. Joaquim do Telhado é o primeiro texto de ficção que publica, em 1922. De novo em Belo Horizonte modela-se o poeta nas leituras de homens como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Milton Campos, Emílio Moura, Mário Casassanta, Pedro Nava e outros com quem vem a formar o núcleo de Belo Horizonte do movimento modernista brasileiro que dava cartas também em São Paulo. Funda a revista A Revista, primeiro órgão modernista de quem vêm a editar-se três números e nos quais se propunha a renovação dos padrões estético-literários brasileiros. Passa a estar nas bocas do meio literário quando em 1928 publica na Revista de Antropofagia, de São Paulo, o seu poema No Meio do Caminho. Enfim, para resumir, a partir daí, sobretudo a partir de 1930, quando lança o seu primeiro livro, Alguma Poesia, não mais deixará de publicar ratificando a sua força expressiva de poeta e narrador. Quando morreu, em 1987, deixou alguns livros inéditos, entre os quais Farewell, apenas editado em 1996, uma espécie de museu privado de afectos, também algo parecido com um diário poético dos dias e da vida como ele a via.

Drummond de Andrade, pois, e Manuel Matos Nunes a elegê-lo como «pedra de paciência» para este seu segundo livro de poesia. Poderão talvez achar que me demoro demasiado em Drummond, pensar até que me esqueci que estou aqui para falar de outro autor, mas não é o caso. O caso, ou a verdade é que a sombra ou o eco deste autor percorre todo o livro de Manuel Matos Nunes (do título pedido de empréstimo a um dos seus versos, até à sua menção no último poema do livro), e daí esta insistência minha. Tão-só porque tais características em muito vêm, na leitura deste livro, a revelar-se como espelho da poesia de Manuel Matos Nunes, e assim ajudarão este que vos fala a transmitir-vos o que poderão encontrar nas páginas deste Insolúvel Flautim.

Até onde ir nesta revelação?… Para não correr o risco de ir demasiado longe, retirando ao leitor o prazer da descoberta, enunciarei apenas alguns traços constitutivos do que poderão encontrar nestas páginas. O livro encontra-se dividido em quatro secções, sendo que isso o assemelha ao que pudesse ser uma antologia do poetizar do autor. Talvez seja apenas tradução de um modo contido de assumir a escrita, não se deixando perder em devaneios excessivos, antes optando pela contenção e pelo verso justo. A poesia, de resto, é também isso: ir apenas ao osso. Desbastar, desbastar, o que não demonstra senão consciência e inteligência no modo de ver e ler a poesia.

Junqueiro e mais além

Entre Os Simples, 
de Guerra Junqueiro,
e os Colóquios dos Simples, 
de Garcia de Orta,
vai a distância sublunar
que há entre
a moleirinha toc toc
e o aloé medicinal.
Ou seja,
entre a doença da poesia
e a cura improvável.

Porém, e malgrado a estruturação do livro em quatro blocos, a multireferencialidade que neles encontramos confere ao todo uma aglutinação e unidade que resulta óbvia. Óbvio, para introito, é o tributo /homenagem que o autor presta no primeiro núcleo a muitos poetas que terão certamente sido companhia sua ao longo da sua própria germinação enquanto escritor; não esqueçamos nunca, como dizia já não recordo quem, que «um escritor começa nos livros dos outros». De resto, essa assunção de algum modo me parece reconhecível quando Manuel Matos Nunes vai buscar o famoso Je est un autre, de Rimbaud. Sobre esta matéria, escreveu Agustina Bessa-Luís, que não era grande fã de poesia (dizia que era demasiado desperdício de espaço branco na página…): «Quanto mais dura uma carreira, mais ela tem que dar espaço às convicções dos outros».

Curioso e interessante não deixa de ser o amplo arco de influências que vemos assinalados, seja no plano da geografia literária como no do tempo. Assim, de Ruy Belo podemos ir até Rimbaud ou Garsilaso de la Vega, passando Annie Playden, regressando depois a nomes pátrios tão distantes no calendário do existir como o são Guerra Junqueiro ou Ana Luísa Amaral, Antero de Quental ou Manuel António Pina. É, no fundo, uma visita ao Parnaso do autor, em que se denota no imediato o que virá a ser o tom geral do seu estar à poesia, ou seja do seu modo pessoal de oficinar a palavra poética. Há erudição quanto baste, contenção no verbo, ironia em doses acertadas, opção pelo verso livre, aqui e ali piscando o olho a formas mais classicizantes como o soneto. Ressalta, naturalmente, uma escolha que não deixa de ser crítica, que não seja pelos nomes que neste Parnaso não entram, e que baliza o próprio situar-se do escritor, Manuel Matos Nunes, no que às famílias da poesia respeita.

Desta secção, um poema:

Ruy Belo: a rapariga de Cambridge

Também eu queria conhecer essa rapariga
estendida ao sol no relvado de um colégio inglês
com um livro nas mãos que ouso imaginar
de uma profundíssima poesia. Queria,
mas já me contento de ver as raparigas do Técnico
sentadas no relvado do jardim do Arco do Cego,
o copo de cerveja entre as unhas de gel
e o caudal de vida que lhes vai no corpo. Essa
que veio de Inglaterra num bilhete postal
é a flor por abrir, a aventura nascida
dos estames do sonho. E as raparigas do Técnico,
expostas sobre a relva aos declinantes voyeurs
de passagem, que dizer delas, musas acidentais
no clímax da tarde, que dizer delas 
ante o sôfrego mistério dessa rapariga de Cambridge
em cujo poema logrei redimir
um pouco da banda cinzenta dos meus dias?

São, na sua maior parte, assim, à imagem deste Ruy Belo: A rapariga de Cambridge, os poemas do livro; contidos, não se dando a grandes poses de afectação ou grandiloquência, deixando no ar um aroma a modernismo, e amiúde, como aqui, no caso deste poema que vos li, travos de pendor auto-satírico, bem expresso no modo como alterna entre o universal e o particular, entre realidades longe e outras próximas, sonhadas e reais, dir-se-ia, Cambridge e o Técnico…

No segundo núcleo do livro, vamos ao Estado das Coisas. O convite é para de algum modo flanarmos com o olhar do poeta pelo correr quotidiano dos dias. Assim também nasce a poesia, de acasos e circunstâncias, ou como diria Mário Dionísio, de fortuitas «solicitações e emboscadas». Escreve-nos Matos Matos Nunes em jeito de intimação a quem o acompanhe na receita da escrita: «Segue os signos… Deixa-te ir… No fim, abre os olhos e escreve o poema que falta.» E nós, leitores, vamos. Seja calcorreando ruas, casas, vilas, seja quase experimentando as dores alheias na acidez estomacal que a certa altura acode ao vate, tal como as suas «noites sem dormir», seja ainda contemplando com ele os velhos que pintam a cidade hoje como pintavam a cidade nos tempos de Alexandre O’Neill, ou, por fim, assistindo ao reflectir do poeta sobre um filme, uma leitura, um programa televisivo ou por via da simples meditação sobre gatos ou baratas. «Até lá», cito, «é viver cada dia por si/ sem alarde nem mágoa».

Deste núcleo, um poema:

Dor epigástrica

Nos anais da dispepsia, há os nervos,
esses geradores da acidez do estômago.
Uma contrariedade, um desgosto,
um mal de amor,
e aí estão os ácidos em clonagem infrene.

Nem sempre resulta o passeio higiénico
depois de jantar
porque dos pés ao estômago estende-se
uma cartografia de acidentes inverosímeis,
tão diferente dos amáveis mapas Google
com aquela figurinha amarela
a saltar de rua em rua como uma criança
pulando as casas do jogo da macaca.

Mais uma noite sem dormir. Suporta
o padecente o inabalável fado
e as suas estultas implicações.

Vergado aos ardis do refluxo esofágico,
faz das vísceras alma,
compondo o seu poema
sem fingimento nem mistério.

Na senda de um outro Parnaso referencial, aqui mais selecto, comedido ou enxuto, Manuel Matos Nunes homenageia de seguida um breve naipe de autores clássicos. Entramos no domínio ou no «Jogo dos Mitos». Homero, Ovídio, Racine, Camões, a Bíblia… Olimpo? O que seja, numa certeza, monumentos da escrita da história da Humanidade. Leio-vos o poema A Aflição de Jonas, citando um dos vários episódios bíblicos em que Deus põe absurdamente à prova várias personagens, caso de Jonas, Job ou Isaac, para desse modo estatuir o seu poder e absoluta omnipotência.

A aflição de Jonas

            Jonas, 2: 1-11

O peixe é do tamanho do mar
e eu não sei se morro afogado
ou sou comido por ele. Senhor,
não era preciso sujeitares-me a tanto
para se cumprir a tua vontade.

Bastava que em pensamento
o quisesses e eu demandaria
Ninive a anunciar a Palavra.
Porque consentiste que fugisse
se não é possível fugir de Deus?

Viagens e Peregrinações – Lugares de Palavras é o último núcleo deste livro. Aqui o ponto de partida aglutinador são geografias, lugares concretos, mas não apenas postais de visita, antes encontros com mapas onde a memória da escrita, de uma forma ou de outra, mais evidente ou mais velada, se inscreve pela recordação/ nomeação de outros que ali viveram ou por lá passaram. Manuel Matos Nunes continua pois a vereda de evocar múltiplas referências do seu universo referencial. Por exemplo Pessoa, por exemplo António Machado, por exemplo Vittorio de Sica e o seu cinema, por exemplo Espinosa, ou também Valery, ou José Afonso ou Goethe, entre outros. Como dizia Manuel António Pina, «somos a nossa memória», e eu acrescento, tal como se deduz por alguns versos de Manuel Matos Nunes, somos também a memória do que não chegámos a conhecer.

Um outro poema:

Baixa da Banheira

Curta é a viagem, apenas um passo
nas arquetípicas lonjuras do orbe.
Porém, como dizia um ajudante
de guarda-livros da cidade de Lisboa,
quando se sente de mais
o Tejo é Atlântico e Cacilhas outro continente.

Sob as árvores à luz de vidro do rio
no Parque Municipal José Afonso:
os adultos passeiam, as crianças
brincam, o melro de Junqueiro trespassa
de gorjeios os recessos das frondes.
E oiço, porque sinto, a voz

do velho trovador com os seus fados
de Coimbra e cantares de andarilho.
Tudo é real como o sol ou o vento
na tarde plena. Compreendo que viaje,
dizia o tal ajudante de guarda-livros,
quem é incapaz de sentir.

Ir à Baixa da Banheira porque sentir
é tudo. Que vá, quem possa,
por essas Franças e Índias dos folhetos turísticos,
ainda que o pôr-do-sol seja o mesmo,
visto daqui ou de qualquer parte do mundo
por onde viaje sem alma o perecível corpo.

Tendemos todos para o esquecimento, dizia o poeta. Tudo tende para o esquecimento, o próprio mundo que vivemos parece tender para o desaparecimento. Nestes tempos de guerra, velocidade e urgência, em que tudo é digerido sem deixar rasto de memória, sabe bem contar com o trabalho de poetas assim, que, na medida breve e desacelerada do verso, nos vão fazendo as vezes de gente como o «escrivão Pêro Vaz de Caminha», anotando para uma hipótese de eternidade possível, que ainda assiste à ideia de livro, registando a espuma que fica dos dias, deixando Carta de um pulsar dos dias. No fundo, exercendo aquela que é uma das funções da poesia, deixar testemunho do vivido, legando aos futuros a memória do que os virá a constituir. É isto que este livro de Manuel Nunes Matos também faz. Quase termino com a leitura do último poema do livro, Rio de Janeiro, que tudo isto resume e no qual, ainda e uma vez mais, ressoam as palavras de Drummond de Andrade na citação do verso «não faças versos sobre acontecimentos», mesmo que seja para contrariar o grande poeta mineiro, rememorando o seu encontro com ele em Copacabana.

Rio de Janeiro

Pausadamente, foste de Leblon e Ipanema
ao reduto rochoso do Arpoador. Compraste brincos
a um homem de feições ameríndias, vogaste
nas ondas alvinegras do calçadão. Copacabana,
a areia, o manto do mar, o friso de ilhas na distância
sem bruma. Foi quando viste o poeta
Carlos Drummond de Andrade sentado num banco
de pedra escura, de costas para a praia,
inerme como uma flor ou um pássaro.
Ali o haviam deixado em manhã de inauguração
da prefeitura, sozinho no Rio, sozinho na América,
sem mulher, sem abrigo,
e com tanto amor que tinha para dar
e com tanta palavra meiga que tinha para dizer.
Passavam mocinhas, rapazes, senhoras de charme
e cavalheiros de idade madura.
Havia bandidos, turistas, madraços,
os botecos vendiam, os banhistas compravam,
mas poucos reparavam nele.
Tiraste uma selfie, escreveste um poema.
Não faças versos sobre acontecimentos, dizia o aedo,
a procura da poesia não se compadece com isso.
Diante da poesia, acrescentava, a vida é um sol estático
que não aquece nem ilumina.
Não seguiste o preceito,
o que se diz uma vez não se diz para sempre,
e além disso foi grande de mais o acontecimento:
o encontro em Copacabana
com Carlos Drummond de Andrade.

Comecei esta intervenção por perguntar onde nasce um livro. Termino a perguntar-me:  quando morre um livro. Muitos, tem-nos ensinado a História, têm terminado esquecidos, proibidos, censurados, queimados, fechados a pó em bibliotecas esconsas. Mais recentemente, alguns vieram querer vender-nos a ideia de que a sua morte anunciada sobreviria agora, hoje, por via da sua substituição pelo livro electrónico. Isso, para mim, seria sem dúvida o fim do livro como o conhecemos. Terminará, por outro lado, um livro quando morre o seu último leitor? Ou não, e esse será o poder maior dos livros, a sua capacidade de fazer perdurar a memória do Homem, pelo que enquanto houver leitores jamais os livros morrerão! Por isso escrever e ler são duas batalhas que o escritor trava desde sempre – lutar pela memória, lutar para que os que morreram nunca sejam esquecidos, habilitando e trazendo para os hábitos dos novos leitores o prazer da leitura. Quando por vezes vou a escolas falar a crianças, hoje mais que nunca desabituadas da leitura, falo-lhes sempre do poder mágico dos livros. Aquele de pôr a falar mortos com vivos; de resto, que é senão isso o que fazemos quando lemos Camões, Rimbaud, Shakespeare e tantos outros que nos deixaram em livro a sua voz? Os livros iludem o tempo.

Tendo por isso a responder à pergunta «Quando morre um livro?» dizendo simplesmente que enquanto houver um escritor os livros não morrerão. Quando um dia mais nenhum livro se publicar, quererá isso dizer que deixámos de acreditar numa ideia de permanência, numa ideia de luta, numa ideia de esperança, numa ideia de dádiva ou legado aos vindouros. Manuel Matos Nunes faz parte destes homens que lutam simultaneamente por uma ideia de permanência e de bBelo associada ao poder da palavra escrita. Este livro é uma forma de o testemunhar. «Insolúvel» o flautim da escrita… Insolúvel Flautim: diria que traduzindo na perfeição os dois sentidos atrás e a início aduzidos como possíveis de entendimento.

Insolúvel porque matéria não dissolvente – a do dizer poético que insiste, persiste e continua a afirmar-se, porque simplesmente a poesia é mais forte que o poeta e continuará a ser uma das formas de expressão artística do ser humano.

E insolúvel sem resolução – na medida em que, face ao mundo de miséria e violência que vamos vivendo, e no qual a poesia se vê cada vez mais reduzida a um rodapé, cabe sempre constatar, não sem espanto, ao ver um poeta: «Eis, aqui na pessoa de Manuel Matos Nunes, mais um homem que resiste, que saberá que hoje a palavra e o belo pouco parecem poder numa sociedade do espectáculo, do imediatismo e do vazio, mas que, ainda assim, contra tudo e eventualmente contra si mesmo, escreve, faz versos, poemas, afirma a possibilidade de um outro mundo, um mundo melhor, certamente mais utópico mas seguramente mais respirável».

[Texto: Pedro Teixeira Neves]
28.01.24