Uma paisagem povoada pela luz e pela infância

Texto de José do Carmo Francisco, de suporte à apresentação do livro de poesia «Pássaro Azul» (ed. On y va), de António Manuel Venda. Lido a 4 de Abril de 2024, em Lisboa, na Universidade Lusófona (Auditório da Biblioteca Victor de Sá).

O novo livro de António Manuel Venda (n. 1968) abre com uma citação de Liyanis González Padrón, integra vinte poemas e ao longo das suas 64 páginas surgem quatro heranças: Goethe, Octavio Paz, Cesário Verde e Carlos de Oliveira. Há nos seus poemas um acordo com os referentes poéticos. Goethe nas cartas a Eckermann afirma que os poemas não podem assentar no nada. Octavio Paz assegura que o passado não passou. Cesário Verde partilha que o que o preocupa é o que o rodeia. Carlos de Oliveira diz que o seu ponto de partida como poeta é a realidade que o cerca.

Em «Pássaro Azul» a geografia começa na «montanha maior da serra dos dois dinossauros adormecidos.» Esta é a paisagem, mas o povoamento é um sonho de criança e um pássaro que tem a cor do mar. Vale mesmo assim lembrar Vitorino Nemésio quando diz «o mar que se levanta é verde». Isto depois da adversativa «poesia e abstracto – não». Mas neste caso (tal como na presunção) cada qual toma a que quer.

Um dos poemas do livro adverte: «não deveria confundir um pirilampo/ com uma estrela». Já o poema anterior desenha o perfil de quem confunde «pilar ternera com pilar quintana». O mundo que nos rodeia hoje instala uma confusão perversa entre as vítimas de ontem e os algozes de hoje. O Gueto de Varsóvia está na Faixa de Gaza. Tudo isso é agora, mas já em 1948 houve o massacre de Der Iassine com os mortos a serem atirados aos poços onde os terroristas da Stern e da Irgun os julgavam esquecidos.

A vida foi destruída, mas a memória permanece viva. O poema «pessoas» mostra como apesar de tudo (a morte do comboio) a vida nasce de novo entre a voz de duas mulheres que passam por um menino («olá pessoas») e pelo seu pai («boa tarde»).

Em «os arquivos invisíveis» surge um homem que não deixam falar uma vez na aldeia e depois na vila. Essa recusa, esse gesto, esse silêncio imposto à voz que se levanta, passa a integrar os arquivos invisíveis do mundo. Pode ser esse o nome do país onde Camões é conhecido pelo olho perdido, Bocage pelas anedotas e Bulhão Pato pelas amêijoas.

O poema «o que não se vê» afirma a ternura de quem não desiste de encontrar as maravilhas do mundo na casa das palavras. E é isso que vale a pena.

No poema «terceira história» há o registo de uma confusão quando numa feira do livro um autor espanhol refere «lucy descai» em vez de «lucy in the sky». Segundo Maiakovsky, as palavras valem menos do que pétalas pisadas depois de um baile, mas sem elas o poeta não pode comunicar com as pessoas no mundo. Escrever é uma maneira de dizer que a morte não tem razão.

O pássaro azul viaja entre as estrelas e os pirilampos e liga na viagem os três mundos – animal, vegetal e mineral. Na paisagem da «serra dos dois dinossauros adormecidos» cada poema procura afirmar que o homem não quer morrer. Escreve por essa razão obscura, mas obstinada. Nos vinte poemas junta-se de novo tudo o que o tempo separou.

 

[Texto: José do Carmo Francisco]
15.04.24